Título: De volta às ruas, contra o mensalão
Autor: Maurício Santoro
Fonte: O Globo, 24/06/2005, Opinião, p. 7

Os escândalos de corrupção no governo Lula são a conseqüência do afastamento do PT da agenda de transformações sociais que levou o partido à presidência e foi trocada por alianças duvidosas construídas sobre o lodo da politicalha nacional. A crise é uma oportunidade para recuperar a importância da participação cidadã na formulação de políticas públicas eficientes e honestas.

O Estado brasileiro é marcado por um déficit democrático e por uma relação muitas vezes autoritária com a população. Prova disso é uma pesquisa sobre transparência orçamentária em 10 países da América Latina, entrevistando parlamentares, acadêmicos e sindicalistas, realizada recentemente pelo Ibase. Nela, especialistas foram unânimes em mostrar que o problema mais sério é a falta de participação dos(as) cidadãos(ãs) no planejamento, na execução e na fiscalização dos gastos públicos. A distância facilita a corrupção.

Havia a expectativa de que o governo Lula alterasse esse quadro, introduzindo no plano federal inovações que o PT implantara no nível municipal, como o orçamento participativo. Contudo, isso não aconteceu. A proposta de acompanhamento do Plano Plurianual de Investimentos (PPA) pelas organizações da sociedade civil limitou-se a manobras oficiais para que essas entidades aprovassem decisões que tinham sido tomadas de antemão pelo governo.

O monitoramento de outras iniciativas de participação além do PPA também revela resultados frustrantes. O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, criado para ser o suposto fórum de um pacto social, apresenta baixa legitimidade, com uma composição que privilegia os bancos e as grandes empresas. As decisões políticas que realmente importam, como a definição do superávit primário e da taxa de juros, são tomadas a portas fechadas, longe da sociedade, e a partir de critérios obscuros. Teatro de sombras que favorece tesoureiros partidários e o cortejo macabro de carros blindados, malas de dinheiro, espiões e gravações secretas.

Nesse contexto a força transformadora dos movimentos sociais, que ajudou a construir o PT virou uma postura passiva diante do governo, na ilusão de que bastaria esperar para que se concretizassem as mudanças vitais para o Brasil. Os erros e as hesitações do presidente foram suportados com paciência e resignação, na suposição de que não havia alternativa.

A situação começou a mudar. Estagnação da economia, arrocho fiscal que confisca 40% do PIB e agora as suspeitas sobre a corrupção estão levando novamente os(as) cidadãos(ãs) às ruas. Os(as) manifestantes que protestam diariamente pelas avenidas do Centro do Rio de Janeiro já incorporaram a suas palavras de ordem refrães contra o mensalão. O grito até então preso na garganta cobra ações de um governo que afirma não ter verbas para investir em educação, saúde e cultura, mas que segundo as denúncias tem outra face, bem mais generosa, para os aliados.

A justa indignação diante da corrupção não pode se transformar no descaso pela política, na suposição de considerar que todos os partidos e seus representantes são iguais e apenas se interessam em vantagens pessoais. A História do Brasil ensina que esse cinismo só favorece a ascensão da demagogia, do populismo ou de pretensas soluções autoritárias.

O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, fundou o Ibase como uma aposta na força da sociedade em construir democracia e justiça social no país. Se estivesse vivo, completaria 70 anos em 2005. A grande lição que deixou na Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida foi a de que o Brasil solidário das pessoas comuns, que rejeita a corrupção e os desmandos dos poderosos, é bem melhor do que o círculo oficial que paga e recebe mensalão. Se algo fará "deste lugar um bom país", como na canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, é o retorno às ruas desta cidadania que estava encurralada.

MAURÍCIO SANTORO é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

A indignaçãocom a corrupção não podevirar descasopela política