Título: Escolhas latinas
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 25/06/2005, Economia, p. 28

Nestes dias de crise, em que surgem dúvidas impensáveis e se fala até, por exagero, em conspiração, reaparece a questão: o Brasil tem instituições suficientemente fortes? A América Latina tem dado sinais inquietantes e outros animadores: a Bolívia vive um vácuo institucional, a Venezuela retrocede ao tempo dos caudilhos, o Chile alcança uma afluência invejável e surpreende.

O Chile é tão conservador que só no ano passado aprovou a lei do divórcio, mas fará uma eleição dentro de seis meses em que a favorita é uma mulher que casou-se, separou-se e tem filhos de dois casamentos. O mesmo Chile que se dividiu tanto na política tem um consenso na economia que não temos no Brasil.

Os próximos 18 meses serão de escolhas e emoções na América Latina. O Brasil estava indo para uma eleição que parecia previamente decidida e agora flerta com uma crise institucional. Que tenhamos a sabedoria de evitá-la. O Chile abre em dezembro a temporada de seis eleições presidenciais na região ¿ que podem chegar a ser oito caso Equador e Bolívia, que estão vivendo momentos de exceção, realizem suas eleições também. O panorama eleitoral do Chile indica uma novidade: a esquerda se uniu, depois que a segunda candidata do bloco renunciou; e a direita se dividiu.

A candidata da Concertación, governista, Michelle Bachelet, vive um grande destino: o pai, general, foi preso, torturado e morto pela ditadura de Pinochet. Ela foi exilada na Alemanha. Morou nos Estados Unidos, estudou na Academia de Estudos da Defesa e graduou-se em primeiro lugar. Foi uma excelente ministra da Defesa e conquistou popularidade com facilidade, um desses fenômenos que acontecem na política. Nem fazia parte da elite do partido. Ela é símbolo de um Chile novo, que muda, inclusive, os velhos preconceitos que o levaram a adiar tanto a aprovação da lei do divórcio.

O que não está em discussão no Chile é a opção por um projeto econômico aberto, privatista e com responsabilidade fiscal. É o único país da região em que se compra casa com 30 anos a 3,5% de juros. Discute-se apenas a periferia do modelo. Ninguém pensa em mudar o coração da política econômica.

O caminho da implantação do modelo não é invejável: algumas das mudanças foram feitas à força pela pior ditadura que a região viu nos terríveis anos 70. Houve momentos em que o Chile tinha 30% de desemprego. Mesmo agora, o país não consegue sucesso no fundamental. Aumentou a renda per capita, enriqueceu o país, reduziu o número de pobres, os pobres são menos pobres, mas o Chile não reduziu a desigualdade. Entre as razões do consenso econômico e do sucesso recente, estão as idéias trazidas da Europa pelos exilados que viram o aggiornamento da esquerda européia.

Se a eleição chilena não chegar à decisão no primeiro turno, haverá novo turno em janeiro. Da direita, são candidatos Joaquin Lavin, ex-prefeito de Santiago, ex-candidato quase vencedor nas últimas eleições presidenciais, e Sebastián Piñera, um empresário rico e com uma intervenção interessante na política, no plebiscito que derrotou Pinochet.

A Bolívia vive conflitos étnicos, velha herança não resolvida dos tempos coloniais, e semanas atrás lembrava espantosamente a Bolívia das quedas sucessivas de presidentes, os quais duravam dias, nos anos 70. O Peru, que terá eleições em abril, tem como candidato com maior preferência um homem também de um tempo ultrapassado, o das moratórias e loucura inflacionária dos anos 80: Alan Garcia.

O México viverá um grande embate na sua eleição de julho. Terá três candidatos fortes, o mais forte deles o da esquerda, Andres Manuel Lopez Obrador, prefeito da Cidade do México. O PRI virá com Roberto Madrazo e o PAN, de Vicente Fox, com Santiago Creel. Na frente nas pesquisas, Obrador tem esclarecido nos últimos tempos o seu pensamento econômico. No ano passado, lançou o livro chamado ¿Un proyecto alternativo de nación¿. Nele, critica a globalização como responsável pelo desemprego e pela destruição dos pequenos negócios. Em entrevista recente ao ¿Financial Times¿ e outras declarações, defendeu tudo isto que está aí: ser cuidadoso com a política fiscal, respeitar a independência do Banco Central, não financiar o gasto público com dívida ou com mais impostos, montar um gabinete com pessoas de comprovado conhecimento técnico. O jornal inglês concluiu que, diante disso, ele se parece mais com o modelo Lula que com o modelo Chávez. Os investidores não parecem muito preocupados; o modelo econômico mexicano depende de uma total integração com os Estados Unidos, isso reduz a incerteza.

Um analista político mexicano lembra que Lopez Obrador tem um ponto fraco: um partido pouco estruturado em vários estados. Está 14 pontos à frente do segundo colocado nas intenções de voto, mas lutará contra duas máquinas. O México tem uma renda per capita quase o dobro da nossa, de US$6.875, mas recentemente ficou furioso com uma projeção do FMI que o teria colocado atrás do Brasil no tamanho da economia. O Brasil seria a 12ª economia do mundo, o México, a 14ª.

A dúvida neste momento é: qual é o modelo Lula? No Brasil, há fantasmas voltando. Aqui, ao contrário do Chile, o país ainda não tem consenso sobre o modelo econômico. Economia aberta, câmbio flutuante, contas em dia, inflação baixa, dívidas honradas não são vistos como opções racionais por todos. Até no partido do governo, que manteve essas opções, há diariamente ataque ao caminho escolhido.

A América Latina mostrou, nos últimos tempos, que há vários modelos possíveis. Alguns já têm sucesso para mostrar, outros parecem uma trágica repetição de velhos equívocos. E escolhas serão feitas ou renovadas nos próximos meses.