Título: MAIORIAS
Autor: Ali Kamel
Fonte: O Globo, 28/06/2005, Opinião, p. 7

Tão logo estourou a denúncia de compra de apoio de partidos, a necessidade de reformar o nosso sistema eleitoral tomou corpo. Eu mesmo esbocei essa tese, mas depois me dei conta de que esse tipo de diagnóstico é parte de nossa doença. É como se disséssemos para nós mesmos: ou se arruma um jeito de dar maioria aos governos ou eles vão ter de continuar comprando deputados. Isso dá vergonha. Certamente o nosso sistema está longe do ideal, mas uma pesquisa sobre o tema mostrará que não existe perfeição: em todos os países, com processos eleitorais diversos, há críticas pesadas quanto ao modelo adotado. O que, no entanto, falta aqui e não falta lá fora é o respeito à lei, seja ela vista como boa ou má. Nas nações desenvolvidas, burlar a lei dá cadeia; aqui, burlá-la é o caminho natural para quem acha que ela não é boa. O nosso sistema eleitoral é muito criticado, entre outras coisas, porque daria origem a partidos amorfos, como PMDB, PP, PTB, PFL e PL. Eu penso diferente. Tais partidos são reflexo legítimo de uma parte do Brasil, assim como o PT, o PSDB, o PPS etc., e contribuem para o equilíbrio necessário num país ainda sujeito a eleger presidentes ao sabor de emoções do momento. Partidos assim acabam sendo o colchão que evita que o país embarque em aventuras sem volta. Recordemos Collor. Imagine que nosso sistema eleitoral fosse de tal ordem que a Collor tivesse sido possível fazer do PRN, um partido de aluguel, a maioria esmagadora do Congresso. Não sei o que teria sobrado do país. Tivemos de enfrentar o confisco da poupança, mas o estrago poderia ter sido ainda maior se Collor não precisasse compor com outros partidos. Em 2002, se o PT tivesse obtido a maioria absoluta, teria sido mais difícil barrar projetos que atentam contra as nossas liberdades fundamentais. Refiro-me ao Conselho Federal de Jornalismo, à Ancinav e à reforma universitária stalinista, por exemplo. O nosso povo tem mostrado grande sabedoria: ao mesmo tempo em que é tentado a apostar em grandes mudanças ¿ como Collor e Lula ¿ faz uma espécie de headge, elegendo democrática e legitimamente um parlamento com mais meios-tons. Isso não é um defeito do nosso sistema, mas uma virtude. Diante das denúncias, todos sonham com mudanças que dêem aos governos maiorias folgadas sem a necessidade de comprá-las, como se só existisse essa opção. O governo, agora, é o maior entusiasta. A Venezuela viu filme parecido. Chávez se elegeu com um Congresso oposicionista, eleito apenas um mês antes nos moldes que agora queremos adotar: listas fechadas, com o eleitor votando não em nomes, mas em partidos. Graças à omissão de um judiciário medroso, Chávez convocou uma Constituinte com regras eleitorais completamente novas: a eleição deixou de ser proporcional com listas fechadas e passou a ser majoritária, com o eleitor proibido de votar em partidos, mas apenas em nomes. O resultado? Chávez conseguiu uma enorme maioria, e abriu caminho para mudar a Venezuela, levando o país a uma tensão política sem precedentes. O caso venezuelano mostra que não é este ou aquele sistema eleitoral que torna possível a formação de maiorias. Aqui, para alcançá-las, querem adotar a eleição proporcional com lista fechada; lá, Chávez acusava exatamente esse sistema de ser o empecilho para a formação de maiorias, o que o fez adotar, depois da Constituinte, o sistema distrital misto. Creio que não é um novo sistema em si que favoreça o surgimento de maiorias, mas a desorientação que mudanças bruscas nas regras provocam. Desorientada, parte do eleitorado fica em casa, e o eleitor mais próximo do líder do momento aparece em maior número para votar. A abstenção na Venezuela mostra isso. Mudar abruptamente o nosso sistema de listas abertas para um sistema de listas fechadas pode desorientar o eleitor. Nosso sistema é um dos mais democráticos: o eleitor pode votar em nomes ou, se preferir, no partido. Tem preferido votar em nomes. Mas, com exceção de 1994, o PT tem sido sempre o partido com maior porcentagem de votos na legenda: 14,6% em 2002, contra 9,4%, do PSDB; 5,7%, do PFL; e 6,1%, do PMDB. Fácil imaginar quem seria o maior beneficiário de um sistema de listas fechadas. Com isso não quero dizer que nosso sistema não careça de melhoras. As mais importantes são o estabelecimento de um bom grau de fidelidade partidária e de cláusulas de barreira que impeçam a existência, em nível nacional, de partidos com importância apenas local. Mais importante do que mudar as leis, no entanto, é fazê-las valer. Querem, por exemplo, instituir o financiamento público de campanhas com o argumento de que ele inibiria o caixa dois: sabendo-se de antemão quanto cada partido levará, se alguma campanha tomar uma feição milionária, isso será um indício de irregularidade. Não creio. Haverá toda sorte de brechas: se uma produtora de TV custar ¿x¿ reais a preço de mercado, haverá partidos que vão declarar que, por amor à causa, certa produtora cobrou vinte vezes menos. E o mesmo acontecerá em relação a camisetas, aluguel de jatinhos, santinhos etc. Hoje, a lei já permite um grande controle, pois os partidos têm de declarar quanto arrecadam. Bastaria que se comparassem os sinais aparentes de riqueza de uma campanha com o que foi declarado para que se flagrassem as irregularidades. Isso nunca é feito. O problema aqui é este: as leis não são respeitadas. Diante das câmeras de televisão, Roberto Jefferson confessou como agiu contornando a lei ao receber ilegalmente do PT R$4 milhões e ao admitir que instruiu seus partidários com cargos no governo a extorquir dinheiro de fornecedores do Estado traficando influência. Em outro país, acabaria preso; aqui será apenas cassado. Mas ele não liga, pois tem dito que ¿já sublimou¿ o mandato. Não precisamos de um sistema eleitoral radicalmente novo. Precisamos de pequenos ajustes. Precisamos punir quem não cumpre a lei. ALI KAMEL é jornalista.