Título: Após a tragédia, a corrupção
Autor: Gilberto Scofield Jr.
Fonte: O Globo, 26/06/2005, O Mundo, p. 38

Ajuda a vítimas das ondas gigantes esbarra em falta de confiança em governos da Ásia

Seis meses depois de ondas de até 15 metros de altura varrerem a costa de 11 países em volta do Oceano Índico, deixando um rastro de quase 300 mil mortos e desaparecidos, o esforço de reconstrução nas áreas afetadas pelas tsunamis esbarra hoje num inimigo bem menos visível: a corrupção, que ameaça a ajuda material e em dinheiro enviada por países e doadores particulares após o desastre.

Segundo o escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários das Nações Unidas, os fundos de ajuda às vítimas somam hoje cerca de US$12 bilhões de governos e particulares, mas somente US$3 bilhões foram efetivamente liberados até agora.

A razão é que os doadores querem projetos claros de uso do dinheiro e um controle da aplicação desses recursos nas várias frentes de reconstrução nos países, como compra de alimentos, construção de casas e fábricas, auxílio ao plantio de colheitas arrasadas, programas de saúde, entre outros pontos.

- É preciso ficar claro que o desastre das tsunamis foi de proporções monumentais e a ajuda para reconstrução é do mesmo tamanho. É claro que este auxílio precisa ser rápido, mas estamos falando de muito dinheiro que está sendo dado por pessoas e governos que também se preocupam sobre a melhor maneira de aplicar estes recursos - diz Jack Jabes, diretor da Divisão de Cooperação Regional do Banco de Desenvolvimento Asiático (BDA).

O assunto é tão importante que o BDA e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) realizaram em abril, com a ONG de combate à corrupção Transparência Internacional (TI), um seminário em que medidas foram sugeridas a governos dos países afetados - especialmente aos de Indonésia e Sri Lanka, onde se registram mais casos de desvios - para garantir que o dinheiro vá para as mãos de quem precisa.

Governos tentam reagir

As formas de desvio são variadas. Há o roubo puro e simples do dinheiro destinado à ajuda, cuja origem é pulverizada entre dezenas de entidades, como a ONU, até pequenas ONGs. E formas mais sutis, como compra de material superfaturado e de qualidade inferior para obras de reconstrução de casas, escolas e hospitais.

- Há varias razões para a corrupção que ameaça a reconstrução do Sri Lanka, por exemplo. O país carece de instituições com poderes legais para inibir a corrupção. A Auditoria Geral do país e comissões de investigação do Executivo não são independentes e carecem de poder. Há também a falta de uma estratégia séria de alocação de recursos e a supervisão no uso do dinheiro é mínima - diz J.C.Weliamuna, diretor-executivo da TI no Sri Lanka.

Leonard Simanjuntak, diretor-executivo da TI na Indonésia, completa:

- A Indonésia está em 10º lugar na lista de países mais corruptos da TI e dada a urgência na aplicação dos recursos, o governo tende a abrir mão de uma série de mecanismos de controle desse dinheiro. É menos burocrático, mas mais sujeito a desvios.

Os governos admitem os casos de corrupção, mas alegam estar reagindo ao problema. Em Banda Aceh, Indonésia, um dos locais mais atingidos pelas tsunamis, o governo colocou na direção do comitê de reconstrução Kuntoro Mangjusubroto, ex-ministro de Minas e Energia do país, conhecido nacionalmente pela sua intolerância com funcionários de governo corruptos.

- Nossa prioridade é garantir o uso apropriado do dinheiro de ajuda. Como a reconstrução é um esforço que vai durar vários anos, há mais espaço para desvios. Mas se os doadores internacionais ouvirem que a corrupção está ameaçando os projetos, corremos o risco de perder esses recursos - diz Kuntoro.

E é exatamente o medo da corrupção que vem atrasando a liberação dos recursos. Primeiro, lembra a porta-voz do Escritório de Assuntos Humanitários da ONU, Elisabeth Byrs, cerca de um quarto da ajuda total vem de doações particulares - e não de governos - uma fatia excepcionalmente alta de gente que quer saber com detalhes o que está sendo feito de seu dinheiro.

Burocracia é obstáculo

E mesmo os governos doadores vêm buscando dos países afetados projetos claros e objetivos, com controles de metas, antes de autorizar o uso do dinheiro. O resultado é a criação de uma inevitável burocracia para controle desse dinheiro, o que vem atrasando as liberações. Até agora, segundo a ONU, só o Japão desembolsou os US$cerca de 500 milhões que prometeu aos países afetados pela tragédia. No caso da Alemanha, dos cerca de US$650 milhões prometidos, só US$100 milhões foram enviados. Dos EUA, só US$120 milhões dos US$850 milhões prometidos se transformaram em ajuda efetiva.

No Brasil, foi grande a mobilização da população para ajudar as vítimas, principalmente do Sri Lanka. Mas a caridade esbarrou em dificuldades para enviar doações para a Ásia. Com a ajuda do governo brasileiro e de empresas privadas, o consulado ainda conseguiu enviar 70% das doações, medicamentos principalmente. O restante, roupas na maioria, foi repassado para o governo do Estado do Rio de Janeiro, para ajudar vítimas das chuvas.

- O excedente de roupas poderia ser prejudicial à indústria do país - explica o cônsul Sohaku Bastos.

Turismo em queda golpeia economias

Ocupação de hotéis cai em até 86%. Surge, entretanto, a figura do turista voluntário

PEQUIM. Além de sofrerem os horrores da devastação das tsunamis, ao menos três países da região - Tailândia, Sri Lanka e Ilhas Maldivas - viram as receitas com o setor de turismo (e em alguns casos, o de pesca), preciosa fonte de recursos, secarem com o recuo da maré. Tradicionais paraísos de surfistas e turistas escandinavos fugidos do frio do norte europeu, locais como Phuket e ilhas Phi Phi, na Tailândia, ou as cerca de 200 minúsculas ilhas que formam o arquipélago das Maldivas, recebem hoje metade dos turistas que recebiam há um ano.

No caso das Maldivas, isso significa um encolhimento provável da frágil economia do arquipélago em 40% este ano. A maioria dos 87 resorts fechou suas portas após a tragédia, afetando a vida de 100 mil pessoas (um terço da população) que trabalham com o turismo nas ilhas. Agora, cerca de 70 hotéis voltaram a funcionar, mas a ocupação está reduzida em 50%.

A Tailândia sofre mais. Em Phuket, cerca de 90% dos hotéis já reabriram, segundo a Autoridade de Turismo da Tailândia (ATT), mas o nível de turistas se mantém menor em percentuais que vão de 67% (entre os escandinavos) a 86% (caso dos japoneses).

- A ocupação dos hotéis em junho se mantém inferior a 20% comparada com quase 60% nas províncias de Phuket, Phanga Nga e Krabi - diz o diretor da ATT em Phuket, Napasorn Kakai.

Desesperadas com a desistência de tantos turistas, muitas agências começaram a baixar os preços dos pacotes em até 60%. E em países como o Sri Lanka, começa a nascer um novo tipo de viagem: o turismo voluntário. Trata-se de uma viagem meio turística, meio humanitária pelas áreas afetadas e pelos lugares históricos que se mantêm intactos. No fim de maio, começaram a chegar os primeiros grupos de japoneses e sul-coreanos ao Sri Lanka. Lá, eles visitam templos, palácios, mas também ajudam a pintar escolas, casas e a brincar com crianças que perderam os pais no desastre e hoje moram em orfanatos. (G.S.)

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