Título: CIGARROS À BASE DE SONEGAÇÃO E LIMINARES
Autor: Martha Beck
Fonte: O Globo, 05/07/2005, Economia, p. 34

Empresas ganham na Justiça autorização para funcionar mesmo sem pagar impostos cobrados pela Receita BRASÍLIA. A indústria de liminares sustenta hoje o setor de cigarros no Brasil. Segundo a Receita Federal, das 16 empresas que atuam neste segmento, apenas duas acertam as contas com o Leão regularmente, o que provocou um rombo nos cofres públicos de R$2,5 bilhões. Seis delas nunca obtiveram o registro especial ¿ autorização do Fisco para que possam funcionar ¿ mas continuam no mercado por meio de decisões temporárias. Outras oito ainda têm o registro especial, mas deixam de recolher impostos e só estão abertas porque conseguiram liminares para adiar o pagamento dos tributos ou se inscreveram em programas de parcelamento especial. Para contornar o problema, a Receita Federal está estudando uma forma de blindar o governo contra essas ações judiciais por meio de uma reestruturação do sistema tributário do setor. Segundo o coordenador de Fiscalização da Receita, Marcelo Fisch, a idéia é reunir num único dispositivo legal toda a tributação dos cigarros. Ele explicou que, atualmente, as regras estão espalhadas por diversas leis, o que cria confusão entre os juízes que analisam os pedidos de liminares. ¿ A legislação hoje está muito dispersa, o que facilita a concessão de liminares. Muitas vezes, os advogados das empresas apresentam legislações que não estão nem mais em vigor. Por isso, estamos estudando a criação de um novo marco legal para o setor ¿ afirmou Fisch. Legislação contestada no Supremo Tribunal Federal Segundo técnicos do Fisco, a indústria de liminares é tão forte que uma empresa funciona desde 1999 apoiada numa única liminar que impede a Receita de cancelar seu registro especial. O total de débitos neste caso chega a R$600 milhões. O lobby da indústria do cigarro é de tal forma organizado que a própria legislação que trata do registro especial para funcionamento chegou a ser contestada no Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin), apresentada por José Calixto Ramos, presidente há mais de 20 anos da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI). No entanto, o ministro Joaquim Barbosa, que analisou a ação, decidiu esta semana não dar prosseguimento ao processo. O caso mais recente de disputa judicial entre Receita e o setor de cigarros ocorreu com a Itaba, quarta maior fabricante do mercado brasileiro. A empresa, que existe desde 2000, atua com a ajuda de liminares. Segundo o relatório final da CPI da Pirataria, apenas em 2002, a Itaba deixou de recolher R$21 milhões em IPI. Segundo tributaristas, o valor pode ser muito maior. No dia 5 de maio deste ano, a Receita Federal cancelou o registro especial da empresa. A Itaba recorreu à Justiça em seis ocasiões e só conseguiu uma liminar suspendendo a decisão do Fisco na sétima tentativa. Para o setor, normas são problemáticas O advogado da Itaba, Alexandre Ruozzi, no entanto, nega que ela tenha deixado de pagar impostos. Segundo ele, o valor que levou a Receita a cancelar seu registro especial foi uma autuação de R$34 milhões devido a uma troca de débitos tributários por títulos. ¿ Estávamos fazendo uma compensação de débitos por meio de títulos amparada por uma liminar, mas a Receita não aceitou isso. A Itaba nunca deixou de pagar seus impostos, mas aquilo que ela acha que não é certo, ela contesta na Justiça ¿ disse o advogado. Ruozzi classificou a legislação do registro especial ¿ que prevê o fechamento de fábricas de cigarros ou bebidas quentes, como uísque e vodca, que não estejam recolhendo impostos ¿ de injusta, porque, em sua opinião, atrapalha a atividade econômica. Essa também é a avaliação do consultor jurídico do Sindicato da Indústria do Fumo do Estado de São Paulo (Sindifumo/SP), Márcio Bicalho. Segundo ele, o fato de muitas empresas do setor estarem atuando por meio de liminares mostra que a legislação do registro especial é problemática. ¿ Fala-se muito de uma indústria de liminares no setor de cigarros, mas também existe a indústria da inconstitucionalidade ¿ justificou Bicalho. Para o consultor, é preciso deixar clara a diferença entre sonegar impostos e o que ocorre com as empresas do setor de cigarros: ¿ Ter a intenção de não pagar impostos é sonegação. Agora, não recolher tributos com amparo judicial ou recorrer à Justiça para continuar funcionando não é sonegação. Bicalho também afirmou que a Receita declara que apenas duas empresas são responsáveis por 99,7% da arrecadação de IPI porque desconsidera as ações judiciais que tramitam hoje. Segundo ele, caso essas ações fossem consideradas no cálculo, o percentual cairia para 88%. De acordo com Marcelo Fisch, do Fisco, no entanto, o que os fabricantes de cigarros querem com as ações judiciais é mesmo sonegar: ¿ O verdadeiro direito que as empresas querem adquirir por trás das ações judiciais é o de não pagar impostos ¿ disse o coordenador. Ele também defendeu o registro especial: ¿ Cerca de 70% do preço do cigarro é imposto. Portanto, o Estado tem que ter instrumentos para interromper a sonegação, e o registro especial é o principal deles.