Título: A polêmica nuclear
Autor: Chico Otavio
Fonte: O Globo, 22/10/2004, O país, p. 3

Na semana em que o governo brasileiro negocia o alcance da inspeção internacional em suas instalações nucleares, artigo publicado pela revista científica ¿Science¿, uma das mais prestigiadas do mundo, ajuda a acirrar a controvérsia em torno da visita da Agência Internacional de Energia Nuclear (AIEA) à unidade de enriquecimento de urânio de Resende. Os autores, os pesquisadores Liz Palmer e Gary Milhollin, afirmam que a capacidade de produção de urânio da fábrica seria suficiente para fazer até seis ogivas nucleares por ano. Se ampliada, sustentam, esta produção poderia chegar a 63 ogivas em 2014.

No artigo ¿O quebra-cabeça nuclear brasileiro¿, Liz Palmer e Gary Milhollin criticam a posição brasileira de impedir o acesso visual dos inspetores às centrífugas de enriquecimento de urânio de Resende. Para eles, as razões não seriam a proteção da tecnologia nacional, mas a tentativa de esconder a origem das centrífugas, que dizem ter sido copiadas de equipamentos da empresa européia Urenco. Segundo ele, a AIEA teria longa história de proteger segredos comerciais.

Esta semana, autoridades brasileira da área nuclear tentaram convencer os técnicos da AIEA que é possível controlar a entrada e a saída de urânio da planta industrial de Resende sem ter acesso às centrífugas. O Brasil está sob pressão internacional. Em abril, o jornal ¿Washington Post¿ já havia insinuado que o país poderia estar planejando produzir secretamente, ou ter a capacidade de produzir, armas nucleares ao desenvolver tecnologia que pode ser rapidamente convertida em programa de armas.

Os autores do artigo da ¿Science¿ atuam na Projeto Wisconsin de Controle de Armas Nucleares, uma fundação não-governamental de Washington que trabalha para impedir a proliferação de armas nucleares, químicas e biológicas e mísseis de longo alcance. No artigo, afirmam que, no primeiro semestre, o Brasil ¿deu um extraordinário passo para barrar as portas deste projeto aos inspetores da AIEA¿.

Acordo criaria precedente

Os dois pesquisadores entendem que o acordo, se aprovado como quer o governo, iria ¿estabelecer precedente para o Irã e qualquer outro país que decida construir esta planta de enriquecimento de urânio¿, como signatário do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares. Embora o Brasil tenha afirmado, reiteradas vezes, que o único objetivo da fábrica de Resende é produzir combustível para os reatores de Angra I e Angra II, a unidade ¿terá potencial para produzir quantidade suficiente de urânio 235 para fazer de cinco a seis ogivas nucleares por ano, dizem os pesquisadores. Em 2010, com a ampliação da escala de produção, será possível fazer a cada ano de 26 a 31 ogivas e, em 2014, de 53 a 63¿. Para chegar a tais números, os autores basearam-se apenas em dados hipotéticos.

Palmer e Milhollin reconhecem, na publicação, que o Brasil tem afirmado que a fábrica estará configurada para enriquecer até 3,5% do urânio 235, a concentração necessária aos dois reatores de Angra dos Reis, ¿muito fraca para abastecer uma bomba, que normalmente exige 90% ou mais desta concentração¿. Mas sustentam que, se o Brasil mudar de idéia, ¿as reservas de urânio já enriquecidas no percentual de 3,5% a 5% terão recebido mais da metade do trabalho para chegar ao grau requerido para construir uma arma¿.

Esta suposta capacidade, que os autores identificam como ¿breakout capability¿ ¿ capacidade de fazer armas nucleares antes que o mundo possa reagir ¿ seria para o artigo da ¿Science¿ o que os Estados Unidos e alguns países europeus têm medo que o Irã esteja planejando atingir. ¿O Irã também planeja construir milhares de centrífugas em uma nova fábrica de enriquecimento, localizada em Natanz, e alega que o único propósito é produzir combustível pouco enriquecido para o seu reator. Se o Brasil tiver sucesso em negar à agência acesso às suas centrífugas, o Irã pode pedir o mesmo tratamento¿.

Os autores afirmam que, segundo o Tratado de Não-Proliferação, não há base legal para tratar os países de forma diferente. Eles lembraram que o governo brasileiro, nos anos 80, desenvolveu um programa nuclear paralelo fora do alcance dos inspetores da AIEA. Segundo ele, só depois que o programa, em 1990, foi abertamente repudiado pelo presidente recém-eleito Fernando Collor, o Brasil aceitou a inspeção.

O artigo aponta supostas falhas na proposta brasileira de dar acesso apenas a tubos, válvulas e conexões da planta de Resende, que a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) afirma ser suficiente para evitar o desvio ilegal de material nuclear. ¿Com estes painéis ¿ placas fixadas para impedir o acesso às centrífugas ¿ vai ser difícil determinar a capacidade de cada máquina e assegurar que as centrífugas não estariam conectadas a um suplemento escondido de urânio¿, afirmam os autores.

Palmer e Milhollin lamentam que a AIEA tenha permitido à Marinha brasileira blindar um grupo de centrífugas por diversos anos em uma fábrica-piloto (no caso, Aramar, em São Paulo), onde o urânio 235 era enriquecido de 3% a 4% . ¿O Brasil pode arguir que, se a agência pôde certificar durante anos a planta piloto (de Aramar) sem ter tido acesso às centrífugas, o mesmo pode ser feito em Resende¿, sustentam.

O Brasil como ¿bom cidadão nuclear¿

Ao levantar a suspeita de que o governo brasileiro estaria tentando esconder a origem das centrífugas, os autores lembraram que, em dezembro de 1996, o Brasil prendeu Karl-Heinz Schaab, um antigo empregado da alemã Man Technologie AG, que desenvolveu centrífugas para o consórcio de enriquecimento europeu chamado Urenco. ¿As autoridades alemães queriam que Schaab fosse extraditado para processá-lo por vender projetos de centrífugas para o Iraque. Há evidência de que Schaab e outros especialistas estejam ajudando o Brasil da mesma forma. Por conseguinte, se os inspetores da agência vissem as centrífugas brasileiras, poderiam descobrir que a informação de design da Urenko foi transferida¿, afirmam.

O artigo conclama o ¿resto do mundo a ajudar os Estados Unidos para convencer o Brasil a considerar a preocupação da comunidade internacional e ser um bom cidadão nuclear¿.