Título: Fantasma a trator
Autor: Xico Graziano
Fonte: O Globo, 05/07/2005, Opinião, p. 7

Aagropecuária nacional encanta o mundo. Há dez anos estava quebrada, combalida pelos nefastos pacotes econômicos. Hoje, lidera a corrida global do mercado agrícola. Um desempenho notável.

Os chamados agronegócios seguraram, entre 2000 e 2003, a economia brasileira. No PIB, no emprego e nas exportações. As fronteiras se expandiram. Nas regiões já exploradas, terras empobrecidas cederam lugar ao moderno cultivo, promovendo a conservação do solo. A pecuária se aprimorou.

Assim, alicerçado em boas notícias, o marketing rural foi vencendo o preconceito nascido desde jeca-tatu. O campo ganhou destaque. De atrasado, construiu imagem de empreendedor. As festas de peão boiadeiro estrelaram na TV. Caipira virou chique.

Tudo parecia uma maravilha. De repente, o tratoraço tomou Brasília. Milhares de agricultores levaram sua indignação contra a política agrícola federal. Reclamam de tudo. Dos juros altos, do câmbio baixo, dos preços aviltados, dos custos elevados, do seguro rural.

Roncaram motores, discursaram. Obtiveram sucesso relativo. Novos recursos foram liberados para a comercialização da safra e para a rolagem das dívidas com os fornecedores de insumos. Promessas variadas adoçaram a discussão. Valeu a pena?

Ninguém duvida, entre os economistas rurais, que o setor agropecuário perdeu significativa rentabilidade nesta safra. A conjuntura esteve realmente desfavorável. É sabido, também, que a seca assolou pra valer as colheitas do Sul/Sudeste.

O chão rachado pela seca não afetou, todavia, o Centro-Oeste. Além do mais, as exportações avançam, enxugando a oferta interna. Poderia ter sido pior.

A recente manifestação do tratoraço levanta uma dúvida atroz, quase um mistério. Por que os produtores rurais se dizem quebrados? Ganharam bom dinheiro nos últimos anos. As margens de lucro bruto se situaram, na soja, ao redor de 50%. No algodão, estiveram em 80%. Como, agora, após anos virtuosos, não conseguem honrar seus compromissos? Eis a pergunta crucial.

Um atavismo explica a charada. Ocorre que a primeira coisa que um agricultor pensa, quando ganha dinheiro, é em comprar mais terra. Abrir nova fazenda, ampliar a produção. Assim funciona a lógica do produtor, como que a realização de um sonho familiar.

Ao imobilizar capital em terra, esquece-se de fazer provisão. Esse desejo meio oligárquico o torna imprevidente, um desastre na economia capitalista. Seu arrojo, esse jeito pioneiro, desbravador, empurra-o para o lado da imprudência. Resultado: quando vem o aperto, na época das vacas magras, entra no desespero, sem poupança.

Há um lado pedagógico nas crises. Uma espécie de aprendizado amargo. Os agricultores precisam se convencer de que inexiste capitalismo sem riscos. O governo pode e deve proteger o setor contra a pressão dos oligopólios, sustentando a renda rural. Isso não significa, porém, estatizar a economia agrária, pois isso privilegia a ineficiência.

É lindo ver aquela fila de máquinas confrontando a podridão política na Esplanada dos Ministérios. Democracia se constrói com participação popular.

O tratoraço, porém, não pode errar o tom. Sabe-se que os líderes rurais estão, por outros motivos, irritados com o governo. O Incra, em conluio com o MST, não cessa a ameaça de lhes seqüestrar as terras. Decepcionados, percebem o presidente Lula se utilizar do prestígio do ministro Roberto Rodrigues para afagar a turma. É compreensível.

Mas a realidade se impõe. Não é verdade que o setor agrícola enfrenta ¿a maior crise de sua história¿, conforme se argumenta. Nem é crível que os produtores deixarão de plantar na próxima safra. Ninguém abandona uma paixão assim facilmente.

Ao forçar a barra nas reivindicações, desanda o discurso ruralista. Exagerando no negativismo, abre brecha para o retorno da malfadada imagem do passado. O marketing da agropecuária se arrebenta quando se exige, ao léu e a rodo, a rolagem das dívidas rurais.

Aqui o terrível mal, o fantasma que assusta a opinião pública e causa tristeza no agricultor de bem. Reivindicar, sim. Prorrogar, talvez. Calote, nunca.

XICO GRAZIANOé agrônomo e deputado federal (PSDB-SP). E-mail: xicograziano@terra.com.br.