Título: RELAÇÕES PROMÍSCUAS
Autor: Tatiana Farah
Fonte: O Globo, 05/07/2005, O País, p. 4

Nem mesmo nas investigações sobre o governo Collor, que culminaram no seu impeachment, chegou-se a um documento tão explicitamente contundente quanto o do empréstimo que o publicitário Marcos Valério avalizou para o Partido dos Trabalhadores. As tão reclamadas ¿provas materiais¿ das acusações do deputado Roberto Jefferson apareceram enfim, além dos indícios veementes de que deputados ou seus representantes estiveram no Banco Rural em Brasília nos mesmos dias em que o indigitado publicitário fazia grandes saques em dinheiro vivo.

Ou que o troca-troca de partidos, estratégia fomentada pela Casa Civil, ocorreu no período de mais intensos saques em dinheiro. Ou ainda que votações importantes foram acompanhadas de saques de Valério.

Aceitar o aval de um empresário que tinha relações comerciais com vários órgãos do governo já seria suficiente para colocar em xeque a lisura da operação. Mas o fato de Valério ter pago a primeira parcela da dívida abre todas as evidências de um esquema de repasse de dinheiro público para o partido do governo.

As relações promíscuas do PT com o governo já haviam sido denunciadas num episódio quase banal, como o show de uma dupla sertaneja em benefício do PT em que o Banco do Brasil comprou ingressos.

Em outro episódio, o Banco do Brasil financiou cerca de R$20 milhões para a informatização do partido, como preparação para a disputa das eleições municipais do ano passado, e como garantia foi dada a contribuição dos filiados do PT, muitos deles funcionários públicos e membros do governo.

Ministros, presidentes de estatal e outras funções de livre nomeação, filiados ao PT, contribuíam compulsoriamente com 2% a 10% do salário, dependendo do cargo. Os funcionários públicos de carreira filiados ao partido contribuíam com 1% do salário.

A cobrança desse ¿dízimo¿, que injetava no PT um financiamento de dinheiro vindo em grande parte do próprio governo, é tão pouco ético que o Supremo Tribunal Federal proibiu a cobrança compulsória.

A desculpa do presidente do PT, José Genoino, de que assinou o documento sem ler, seria aceitável se não se tratasse de um empréstimo de R$2,4 milhões. Como sabia que nem ele nem o tesoureiro Delúbio Soares tinham condições de pagar o empréstimo, é impensável que Genoino não tenha se interessado em saber quem era aquele terceiro avalista tão abnegado que aceitara assumir o risco.

A confiança que o presidente do PT demonstra em Delúbio Soares, mesmo depois de dizer-se ludibriado por ele no episódio do aval, pode ser uma qualidade no aparelho partidário, mas o que os dirigentes do PT mais uma vez parecem estar fazendo é confundir o partido com o Estado brasileiro.

Ninguém, a não ser os filiados do partido, tem nada a ver com o código de honra interno do PT, nem com os compromissos e negociações que as diversas facções petistas assumem umas com as outras.

A partir do momento, porém, que o partido chegou ao governo e ocupa a maioria dos cargos da administração pública, é o Estado brasileiro que está em jogo, e o código de ética petista não vale nada nesse caso. O que passa a prevalecer são os valores morais aceitos pela maioria da opinião pública, que não é petista.

Assim que foi eleito, o presidente Lula apareceu em algumas solenidades com a estrela do PT na lapela, e foi tão criticado que acabou trocando-a pelo broche com os símbolos da República. Mais adiante, um grande canteiro com a estrela vermelha do PT foi plantado nos jardins do Palácio Alvorada, e, mais uma vez, as críticas da opinião pública obrigaram uma revisão de procedimentos por parte do presidente e da primeira-dama, autora intelectual do projeto de jardinagem partidária.

Como se vê, um governo que adotou o adjetivo ¿republicano¿ para identificar suas ações, tentando dar-lhes uma conotação suprapartidária, sempre confundiu o partido do qual provinha com o governo que transitoriamente ocupa. O fato é que nunca foi possível dissociar o PT do governo, e todas as disputas no partido tiveram reflexos no funcionamento governo.

Seja na ampliação de vagas de Ministério para favorecer companheiros derrotados, seja na disputa política entre o PT e os partidos aliados, que gerou sempre uma tensão nessa relação. Ou ainda nas brigas internas no próprio PT, como a que envolve a definição do candidato a governador de São Paulo, que acabou refletindo na impossibilidade de chegar-se a um consenso sobre o candidato do partido à presidência da Câmara e abriu caminho para a vitória do deputado Severino Cavalcanti.

As muitas negociações ¿não republicanas¿ que teriam sido desenvolvidas até recentemente, na peculiar definição jeffersoniana, acabaram colocando o governo na situação de refém do PT. Não há solução possível para a crise apenas com uma reforma ministerial que vai dar força a um PMDB cujo líder José Borba acaba de ser incluído pelo ¿Fantástico¿ na lista do mensalão.

Uma renovação completa da cúpula do PT, e o esclarecimento total da culpa de cada um no esquema de corrupção legislativa, que tudo indica foi montado a partir da Casa Civil da Presidência da República e do Partido dos Trabalhadores, são necessárias. A saída isolada do secretário-geral Silvio Pereira não é suficiente, nem tampouco refazer a direção do PT com membros oriundos do próprio governo. O que é preciso é cortar esse relacionamento promíscuo entre o partido e o governo.