Título: DUAS MULHERES
Autor: ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
Fonte: O Globo, 04/07/2005, Opinião, p. 7

Nélida Piñon ganhou o Prêmio Príncipe de Astúrias. Um mês antes, Lygia Fagundes Telles ganhara o Prêmio Camões. Espanha e Portugal recompensaram a excelência de duas importantes obras literárias e o trabalho de vida inteira de duas brasileiras que acreditaram na literatura e viveram para ela.

O Brasil deveria tocar trombetas, já que soltar fogos hoje é atividade suspeita, festejar em grande estilo esses dois prêmios. Não só pelo que representam no mundo literário, mas pelo sentido de redenção que podem ter no momento que estamos vivendo. Deveríamos agradecer a Lygia e a Nélida por existirem e por trazerem alguma auto-estima a este país quando, parodiando Eça de Queiroz, precisamos de um banho por dentro.

Ficcionistas, são mestras na verdade das mentiras de que fala Vargas Llosa, senhoras da utopia que nasce do anseio de corrigir um mundo insatisfatório, uma vida sentida como limitada e que se desdobra, então, em outras, inventadas. Vargas Llosa tem razão, ninguém escreve para contar o mundo como ele é, mas para dar visibilidade a outros possíveis.

A Nélida e Lygia devemos agradecer não só pela verdade de suas ficções, mas pela integridade de suas vidas reais.

É bom saber que usam o mesmo passaporte que nós, escrevem na nossa língua, se emocionam com nossos dramas que transformam em romances. Elas deveriam ocupar a primeira página dos jornais, jogar para fora das manchetes, de volta às páginas policiais, a bandidagem que invade nossas casas vestida de homens públicos, que ocupa as conversas na hora do jantar, envenenando o espírito das crianças. Esses que nos dão o sentimento de viver em um acampamento de bandoleiros, cada um pronto para dar o bote no saco de dinheiro que o outro escondeu. Esses cuja simples existência deveria ser imprópria para menores.

As histórias de Nélida e Lygia deveriam ser contadas aos jovens como exemplo de vidas dignas, provando que não é necessário, para ser alguém, vender-se ou comprar, roubar, trair, tudo isso que nos é servido como pão de cada dia e com que convivemos, como se fora a condição humana. Os jovens aprenderiam com elas que existem outras maneiras de viver, que a arte é um caminho difícil e ao mesmo tempo alegre, uma forma de poder. Aqui sim, caberia o slogan ¿um outro mundo é possível¿, quando a coragem de dedicar a vida a um projeto, em que fins e meios se retroalimentam sem contradição, é um valor que encontra reconhecimento e recompensa. Nem tudo está à venda, não todos.

Quando alguém, indignado com o espetáculo da política, dá de ombros e suspira, amargo, ¿essa é a cara do Brasil¿, se engana. Escândalos não são a única cara do Brasil. São a sua deformação, a plástica malsucedida que cobre com alguns traços de modernidade o que de mais esclerosado sobrevive na sociedade.

Olhamos para a lixeira como se fora o único compartimento da casa, o que não só é desesperante como tem o poder subliminar de sugerir que somos todos gente da mesma laia e que, nos tempos que correm, não há mais lugar para almas fecundas, nem para pessoas decentes. Uma espécie de ditadura da mediocridade e da sordidez vai se impondo como modelo, disfarçada de frio realismo e é com esse disfarce que inflige ao que o Brasil tem de melhor uma espécie de exílio interno, um decreto de não-existência, uma condição à margem, a pior das derrotas, o desânimo, a derrota moral.

Não se luta contra essa violência com lamentos, mas com uma mudança radical de ótica que abra espaço e visibilidade ao que temos para celebrar, nossos acertos, nossos prêmios, os que ganharam e trouxeram para cá, como um presente, essas senhoras, que souberam habitar uma república dos sonhos ou interrogar a estrutura da bolha de sabão.

Lygia e Nélida são metáforas que dão a ver um Brasil que é sucesso, beleza, arte e cultura. São a face luminosa do país.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora e presidente do Centro de Liderança da Mulher.