Título: DEMOCRACIA COM CARTAS MARCADAS
Autor: FERNANDO GABEIRA
Fonte: O Globo, 04/07/2005, Opinião, p. 7

Desde a década dos 70, discute-se na Europa a crise da democracia. Alguns a chamam de crise de legitimidade, outros de governabilidade, mas todos concordam que há algo de decadente na democracia representativa.

Esse fenômeno pode ser constatado de várias maneiras, mesmo por quem não se interessa por teorias políticas. As demandas da sociedade são sempre superiores à capacidade do Estado em atendê-las. Outra evidência: grandes índices de abstenção revelam desinteresse pelo processo eleitoral.

A preocupação européia é tão grande que foram constituídos grupos de estudos com luminares das principais universidades e lançados dois volumes sobre o tema pela Oxford University Press. O primeiro deles fala sobre a relação mutante entre cidadãos e o Estado e o segundo sobre o impacto de valores na política, em outras palavras as novas razões para se interessar.

Mesmo se tudo estivesse funcionando razoavelmente no Brasil, tomando-se o razoável pelo padrão da Europa Ocidental, não escaparíamos dessa sensação de crise. Muitos estranharam quando afirmei que o suborno de deputados era um crime contra a democracia. Pior do que isso: é um crime contra a democracia fragilizada pela sua própria crise.

No tempo da ditadura militar, o medo de ser cassado ou mesmo perseguido pela repressão política anulava o pleno exercício do mandato. Em tempos de mensalão, o que anula o pleno exercício dos mandatos é o simples suborno.

Além de todas suas limitações, passa-se a viver uma democracia com cartas marcadas. Mesmo quem não recebe dinheiro do governo, tem seu mandato limitado pelo contexto. De que adianta se preparar para debater um tema, alinhar argumentos, dispor-se a concessões temáticas em busca de um mínimo de consenso? Os deputados comprados podem até prestar atenção nos seus argumentos, em certos casos até aplaudi-los com entusiasmo. Na hora da votação, o jogo de cartas marcadas se revela.

Se olharmos para trás, portanto, veremos que o parlamento brasileiro ainda não se libertou do peso dos governos. Por medo ou pelo dinheiro apenas agravou uma crise que já existe, em países chamados desenvolvidos.

Fala-se muito hoje em reforma política. Todos os projetos buscam reduzir as brechas para que a democracia representativa mereça esse nome. Mas nenhum deles toca no ponto essencial: a democracia representativa sozinha não se agüenta mais nas pernas.

Embora não seja marxista, gosto muito de uma de suas teses, segundo a qual a sociedade não se coloca problemas que não possam ser resolvidos.

Nossa crise, pela primeira vez, projetou em cena o peso da internet. As notícias circulam mais, reproduzem-se, as opiniões são mais numerosas, enfim cresceu a capacidade de acompanhar os fatos.

Esse formidável e novo aparato técnico que existe no Brasil permite a tomada de decisões rápida e maciça. As próprias eleições representativas revelam o avanço técnico.

Nenhuma reforma política salvará a democracia representativa se não for levado em conta esse dado novo: a possibilidade de democracia direta.

Ninguém propõe que uma substitua a outra. Mas a chance de rejuvenescimento está ancorada na possibilidade de uma nova combinação entre o trabalho do parlamento e as decisões populares, através de referendos e plebiscitos.

O século XX está acabando no Brasil, com o colapso de uma das teses mais caras à esquerda leninista: os fins justificam os meios. Se o fim é um sistema totalitário, a democracia é apenas um instrumento tático.

Os dirigentes que compraram deputados não cometeram apenas um crime comum de suborno. Realizaram um atentado contra uma democracia em crise, porque, essencialmente, não acreditam nela e em suas capacidades de ser aprofundada.

Em que pesem CPIs, processos penais e tudo isso, o julgamento mais severo que será feito contra eles poderá ser encontrado precisamente naquele espaço onde a democracia se revitaliza: na imprensa e, sobretudo, nos debates na rede.

Olhando para trás, entendo por que me chamaram de traidor quando lutei e teorizei sobre a importância de quebra do monopólio estatal na telefonia. As possibilidades técnicas do mundo moderno ameaçam até aos políticos bem comportados. Imagine o que não fará com aqueles que sonham com um Congresso dócil e o controle estatal da informação?

O mundo está se mexendo sob nossos pés e é falsa a impressão de que enterramos apenas o sonho de uma esquerda autoritária. Os contornos do novo momento são ainda indefinidos. Mas a democracia jamais será como antes no Brasil com televisão, telefone e computadores.

Entregues a si próprios, os políticos não abrem mão de alguns de seus poderes para a democracia direta. Só o farão com uma pequena ajuda dos amigos, e, se preciso, alguns gritos e vaias.

FERNANDO GABEIRA é deputado federal (PV-RJ).