Título: Dieta pós-eleitoral
Autor: Helena Chagas
Fonte: O Globo, 25/10/2004, O país, p. 4

O primeiro ingrediente é uma boa dose de ressentimento eleitoral; adicione-se aí a briga de foice pelo comando do Congresso e acrescente-se uma oposição fortalecida e radical, sem esquecer aquela pitada de intriga que tempera os pratos de Brasília. Pronto: aí está a receita da desarticulação da base governista e da paralisia do Legislativo. Tem jeito? Tem, mas só com moderador de apetites.

Sobretudo para o Planalto, que tem que parar de dar a impressão de que está mais preocupado com o projeto político e eleitoral do PT do que com o governo. Caso contrário, perde de vez o passo no Congresso e não consegue votar reformas fundamentais para a continuidade do crescimento da economia.

É inevitável: o governo terá que reconquistar a confiança de vorazes aliados e tentar reabrir diálogo com a oposição mais indigesta em meio aos preparativos para a armação do palanque da reeleição de Lula. Precisa se equilibrar entre dois vetores que parecem seguir rumos contrários: o projeto de poder e o de fazer um bom governo. Só que, sem o segundo, o primeiro não vinga.

Nessa reta final do segundo turno, interlocutores do presidente estão caindo na real e reconhecendo excessos e exageros na copa e na cozinha do governo em nome do partido. Chegou a hora de baixar o fogo e dar conta de um cardápio pesado. Por exemplo:

A REELEIÇÃO VAI PARA O VINAGRE E É PRECISO COLOCAR LOGO NA MESA O PLANO B: Boa parte dos políticos ligados a Lula já não leva fé na aprovação da emenda da reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Com a paralisação dos trabalhos, devida, entre outras razões, à obstrução do PMDB de Renan Calheiros, o tempo fica cada vez mais escasso para João Paulo e Sarney. O nome do deputado já freqüenta rodas de apostas para a reforma ministerial, lembrado para a coordenação política, num rearranjo que devolveria o cargo ao PT e transferiria Aldo Rebelo de pasta.

O PLANALTO NÃO PODE DEIXAR SARNEY COM FOME: Aliado de primeira hora do governo Lula, o ex-presidente não pode ficar na planície ao Deus-dará. Com o fracasso da reeleição, estudam-se duas saídas para um acordo com Sarney: uma indicação para o ministério ou um acerto, desde já, para que a senadora Roseana Sarney, transferindo-se para o PMDB, seja companheira de Lula na chapa de 2006. Podem vir as duas soluções.

É PRECISO CURAR A INDIGESTÃO ELEITORAL DOS ALIADOS: Se o PT não foi bom aliado em 2004, como convencer que será em 2006? Dissolver mágoas não é fácil. Os partidos da base governista, com exceção do PPS ¿ que, coincidência ou não, tem um pé em cada canoa ¿ saíram machucados da eleição. O PT deixou claro que é mau parceiro, não hesita em passar o trator. Nas palavras de um aliado de primeiro escalão, petista só gosta de aliança quando a posição do outro é de subserviência. Esse ressentimento tem ajudado a travar a pauta do Congresso e só será dissipado se o governo e o PT provarem que sabem ceder. Ainda que a economia e o desempenho na eleição mostrem que o governo sai na frente para 2006, no fundo do coração cada aliado está se perguntando se terá lugar à mesa.

QUEM VAI SE SENTAR À OUTRA CABECEIRA? A briga para ser o aliado número um do Planalto já começou e a base governista só se recompõe quando cada um souber qual será seu espaço. Maior em tamanho e bancadas, o PMDB vive mais uma crise de identidade na relação com o Planalto. Além de divergências inconciliáveis em palanques que vão se reproduzir em 2006 (Rio Grande do Sul, Pernambuco, Rio, etc), os peemedebistas querem acordo satisfatório no Senado: Renan ou alguém ligado à bancada. Querem também a vice de Lula. Mas, para dar tudo isso, além de acenar com composições eleitorais, o Planalto precisa da garantia de levar pelo menos boa fatia do PMDB ¿ já que inteiro ele não vai a lugar nenhum. Esse é o problema. Enquanto isso, o PTB corre por fora. Desistiu de suas candidaturas Brasil afora para apoiar o PT na eleição, mas agora, cheio de apetite, quer ajuda de Lula para engordar a bancada. E mais um ministério, que já pode vir com o modelito Ciro Gomes. Ah, claro, também quer a vice.

OPOSIÇÃO VITAMINADA VIROU OPÇÃO: O que move os políticos é a expectativa de poder. De repente, o PSDB fortalecido nas urnas de 2004 passa a ser um concorrente de fato em 2006. Ainda que a mesa do Planalto seja mais farta e cheia de quitutes, o pessoal agora tem para onde ir. Sabe que não vai passar fome do outro lado.