Título: Três fazendas por R$500
Autor: Alan Gripp
Fonte: O Globo, 02/07/2005, O País, p. 3

Viúva de sitiante diz que recebeu este valor de Marcos Valério mas registro foi feito por R$200 mil

Pelo menos cinco grandes fazendas em nome do publicitário Marcos Valério de Souza no sertão da Bahia foram registradas com o uso de laranjas. Documentos obtidos no cartório de registro de imóveis do município de São Desidério, no oeste do estado, revelam que as propriedades foram compradas em 2001 pela DNA Propaganda, que pertence a Marcos Valério, de trabalhadores rurais aposentados, muito pobres na vida real, mas transformados em prósperos produtores rurais, donos de vastas extensões de terra, nos documentos de compra e venda.

Num dos casos, a DNA registrou em cartório a compra das fazendas Bom Jesus I e Bom Jesus II de Aristóte Gomes de Araújo - que morreu em 1999 - por R$200 mil. Mas a mulher de Aristóte, Laurita Maria de Araújo, de 73 anos, analfabeta, mora em uma casa de alvenaria no centro de São Desidério e contou ter sido pressionada por duas vezes por um homem chamado José a assinar um papel que diz nem saber o que era. Em troca, recebeu cerca de R$500 - usados, segundo ela, para comprar comida.

- Veio um homem e disse: 'Dá a assinatura, dá a assinatura'. Depois sumiu, nem sei aonde parou - diz ela. - Nem sei ler moço. Gente besta é enganada por gente sabida.

Fazendas somam 25 mil hectares

Outros colonos também contaram ter sido donos de pequenos pedaços de terra, improdutivos, herdados dos pais na primeira metade do século XX. A análise dos documentos mostra, no entanto, que as terras agora em nome da DNA foram transformadas no cartório de São Desidério em cinco grandes latifúndios, que somam uma área de mais de 25 mil hectares.

Com Gorgorio Tolentino de Sirqueira, de 63 anos, também analfabeto, foi quase a mesma coisa. A diferença é que ele diz nunca ter recebido um centavo pelas pequenas terras. Foi visitado por um homem dizendo precisar de uma assinatura e, no papel, tornou-se dono dos mais de 20 mil hectares correspondentes às fazendas Barra I, Barra II e Barra III. Terras supostamente vendidas por cerca de R$300 mil, que ele nunca viu.

- Vendi só o papel. O dinheiro não dava nem para comprar um cabrito.

No cartório consta que os representantes da DNA na transação eram Marcos Valério e seu sócio Daniel da Silva Freitas, sobrinho do vice-presidente José Alencar. Daniel morreu em 2002. A aquisição das propriedades, suspeitas de existirem apenas no papel, permitiu que a DNA engordasse de imediato o seu patrimônio em R$560 mil. Em 2003, os cinco latifúndios (além da Fazenda Vereda, também em nome de Marcos Valério) foram reavaliadas a pedido do publicitário em R$9,1 milhões e dadas como garantia no processo de dívidas com o INSS - que tem valor de cerca de R$8,9 milhões - e com outras empresas.

O cartório de São Desidério é investigado pela Corregedoria do Tribunal de Justiça da Bahia pelo registro ilegal de propriedades. A apuração foi aberta depois que a empresa Brascan, do Rio, denunciou irregularidades nos registros das chamadas fazendas "de segundo andar", terras legalizadas em áreas já ocupadas. A juíza da cidade, Karla Moreno Grogorutti, admite que o crime é muito comum na região.

- É o que chamam aqui de terra sobre terra. Aqui existe muito mais terra do que a área (disponível).

Marcos Valério é alvo de um inquérito da Polícia Civil por falsificação ideológica e uso de documento falso no registro de outra fazenda: a Barra. A suspeita foi levantada depois que os policiais descobriram que as terras pertencem ao empresário Vitor Abou, apesar de também estarem registradas no nome da DNA.

Em nota, a DNA repudiou as notícias sobre "suposta falsidade ideológica e uso de documento falso" na apresentação de garantias para pagamento de dívidas. A agência disse ainda ter apresentado "certidões de posse das referidas fazendas, expedidas por Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas". E apresenta ainda laudo de avaliação assinado por um oficial de Justiça e por um avaliador oficial, fixando o valor das propriedades.

Legenda da foto: GORGORIO TOLENTINO, ao centro, com a família: Vendi só o papel. O dinheiro não dava nem para comprar um cabrito.