Título: FANTASMAS NO ARMÁRIO
Autor: LUIZ PAULO HORTA
Fonte: O Globo, 08/07/2005, Opinião, p. 7

Depois de mais uma brilhante explosão verbal de Arnaldo Jabor ("A dialética da estupidez", O GLOBO de 5/7/2005), naquele estilo inimitável que tanto pode lembrar James Joyce como um divã de analista, talvez valha a pena dizer as mesmas coisas, ou coisas parecidas, num tom mais cartesiano - ou mais terra a terra, como quiserem.

A lambança feita na vida pública brasileira pelo PT e seus representantes no governo é, realmente, coisa inédita. Custa crer que, num partido que falava tanto em ética, fossem nulos, ou quase nulos, os anticorpos referentes às seduções do poder.

O que sobrará dessa orgia de ganância e incompetência? Difícil de dizer. Há um esforço quase patético para preservar, na medida do possível, a figura do presidente, por tudo o que ele representa na História moderna do Brasil, e pela sua própria história pessoal.

Também não deveríamos desejar o desmonte completo do PT. "O PT é importante para a democracia brasileira", escreve Míriam Leitão com o seu bom senso habitual. "Goste-se ou não de suas idéias, suas atitudes e seu estilo, ele é parte inseparável da construção democrática do Brasil."

Concordo. Com tudo o que está acontecendo, seria precipitado dizer que não sobra nada do PT. Ali, como em qualquer partido, o joio e o trigo andam misturados; e é bom que o próprio PT, agora, descubra isso, destroçada a sua imagem de vestal.

Sair da lama (e olhem que vem mais lama) exige uma faxina digna de Hércules. Mas esse é só um aspecto da questão. Há outros. Por trás da agonia do PT e do governo Lula, é fácil enxergar alguns fantasmas da esquerda tradicional que ninguém, até agora, quis exorcizar, e pelos quais o PT está pagando. A eles:

1) Arrogância. Há um tipo de pensamento político, originário do marxismo, que pode ter batido todos os recordes da História em matéria de arrogância intelectual - e de desqualificação do adversário. Aquela velha esquerda que nós conhecemos tinha o privilégio de conhecer as leis da História. Ela era a detentora do progresso. O marxismo era um conhecimento "científico" da História. Tudo o que atrapalhasse esse caminho era "reacionário". Não havia discussão possível. Péssima preparação para o jogo político.

2) "Moral burguesa". A partir da premissa anterior, tudo o que importa, no fundo, é conquistar e manter o poder. Quem não se lembra dos férvidos anos 60, em que, nos arraiais de esquerda, professava-se um solene desprezo pela "moral burguesa"? Tudo era válido, contanto que adiantasse à "causa". Os fins passavam a justificar os meios. Jogou-se ao mar a "moral burguesa", mas o que ficou, na ausência de princípios, foi um tremendo vácuo moral. Para conquistar e manter o poder, você fará aliança com o próprio demônio (Stalin não fez pacto com Hitler?). As conseqüências disso aí estão no "pragmatismo" da direção do PT, que, agora, vai caindo aos pedaços.

3) A "teoria do conflito". Esse é um cacoete mais fundo, que vem das cabeceiras filosóficas de onde derivou o marxismo. O processo histórico, a partir de Hegel, passa a ser descrito como um mecanismo de que o motor é o conflito. Na filosofia de Hegel, esta era a tríade "dialética": tese, antítese, síntese.

No marxismo, descendo muitos degraus, isso passou a ser a luta de classes. A História avança quando a classe operária derrota a burguesia e se instala no poder. Para isso, é preciso identificar o "inimigo do povo" - na verdade, vê-se inimigos por todos os lados. Foi o que o comissário Dirceu quis fazer quando viu que o seu barco ia afundar - secundado, mais recentemente, pelo companheiro Delúbio, que denunciou o ataque dos "direitistas".

Mas, dirá alguém, o conflito das classes não é uma realidade do dia-a-dia, e de todas as épocas da História? Que há um tipo de choque permanente, é evidente - sobretudo em países, como o nosso, onde o bolo da riqueza está tão mal distribuído. Mas a função do governo, nesse caso, não é estimular e potencializar o choque, e sim tentar extrair do próprio conflito razões para uma evolução social efetiva.

Foi o que aconteceu nos Estados modernos, onde as classes não desapareceram (elas sempre existirão), mas aprenderam a conviver, e a progredir em todos os sentidos.

O outro caminho é o do coronel Chávez, que partiu a Venezuela em duas. Ou, num caso clássico, o do maoísmo. O velho Mao, com a "revolução cultural", levou o choque das classes ao paroxismo. Quase acabou com a China. Aí veio uma nova direção, que mandou os chineses enriquecerem num sistema que é, hoje, o exemplo mais chocante de "capitalismo selvagem".

Seria de desejar que, em conseqüência da crise de agora, o PT - que tem congresso nacional em setembro - não batesse em retirada na direção do velho gueto de esquerda, de onde o retirou o presidente Lula. Daquele velho gueto, nem sai uma sociedade moderna e nem uma revolução que valha a pena.

LUIZ PAULO HORTA é jornalista.

Como em qualquer partido, no PT também estão misturados o joio e o trigo