Título: A PRIMEIRA GERAÇÃO
Autor: Ruben Berta
Fonte: O Globo, 10/07/2005, O Globo/Caderno Especial, p. 1

A separação do marido levou Vicentina às ruas pela primeira vez quando a filha Maiara tinha apenas 3 anos de idade

m o filho no colo), observa da porta de seu casebre a Favela do Arará

z carinho no filho

¿É uma história muito triste, senhor. Não vale a pena contar.¿ É quase sempre assim, com a mesma timidez herdada pela filha mais velha, Maiara, de 18 anos, que Vicentina Vasconcelos Pinto resume seus 39 anos de vida. Filha de mineiros da cidade de Caratinga que vieram tentar a sorte no Rio, ela foi criada no Morro do Turano, no Rio Comprido, sem ter idéia do que é luxo, mas sem se queixar. Estudou o suficiente para ler e escrever, e, com o casamento com o pai de Maiara, Wanderley Ferreira, aos 20 anos, tornou-se uma dona de casa humilde. Mas, por trás da timidez, esconde-se um gênio forte.

¿ Ah, não pisa no calo da minha mãe, não. Ela vira bicho ¿ diz Maiara.

Se Vicentina já não poupava brigas com seus quatro irmãos na época em que morava com os pais, a cena não demorou muito a se repetir no primeiro casamento. A separação de Wanderley veio quando a filha Maiara tinha apenas 3 anos. Na mesma época, o marido endividado perdia a pequena oficina de conserto de carros e conseguia um emprego de florista na Praça Afonso Pena, na Tijuca.

¿ No início, tudo estava indo bem. Meu marido era trabalhador. Mas foi a cachaça que acabou com ele. Não vou dizer que não bebo uma cerveja, mas daquela forma não tinha jeito ¿ relembra Vicentina.

Sem dinheiro e dizendo não agüentar mais as agressões do marido em casa, ela chegou às ruas pela primeira vez em 1990 para uma série de idas e vindas. Há pouco menos de um ano, vive num pequeno barraco de madeira à beira da linha ferroviária, na Favela do Arará, em Benfica, com a filha Tainara, de 9 anos. Do pai de Maiara, Wanderley, sabe-se apenas que morreu há cerca de dez anos, vítima de um derrame.

¿ Minha mãe sempre me pedia para ir lá na floricultura pedir dinheiro a ele. Quando meu pai não dava, a ordem dela era fazer um estrago, espalhar o máximo de flores possível ¿ conta Maiara.

Depois de Wanderley, foram várias as tentativas de arranjar um novo companheiro, praticamente todas encerradas com brigas. Sempre com a cachaça como motivo. No Morro da Chacrinha, na Tijuca, onde morou de favor na casa de uma amiga, Vicentina conheceu em 1995 o flanelinha Alexssandro Borges da Silva, pai de Tainara, com quem viveu pouco menos de três anos. Boa parte deles passada não na favela, mas na Praça Afonso Pena, na Tijuca, onde costumavam dormir. Aprendeu ali a maneira de sobreviver que conhece até hoje:

¿ Vendo doces, mas não fico parada, não. Vou andando pelas ruas da Tijuca e do Maracanã.

Para não fugir à regra da própria Vicentina, a história com Alexssandro não teve final feliz. No dia 25 de abril de 1998, depois de uma semana no Hospital Souza Aguiar, ele morreu em conseqüência de fortes queimaduras por todo o corpo. Com a convicção de sogra, a mãe de Alexssandro, Edna Borges, acusa a nora de ter jogado álcool e ateado fogo no corpo de seu filho durante uma discussão na Praça Afonso Pena. Vicentina desconversa quando o assunto é o ex-companheiro. Não houve processo sobre o caso. O fato é que Edna fez enfim o enterro verdadeiro do filho:

¿ Foi a terceira vez que ele morreu. Na primeira, mataram um flanelinha que achávamos que era o Alexssandro. Na segunda, teve velório. Só cancelamos quando ele chegou na favela dizendo que estava vivo.

O último companheiro, Luiz Alberto, Vicentina conheceu em 2003, quando passou oito meses num abrigo da prefeitura na Praça da Bandeira, onde estava com Tainara. Se a cachaça não foi problema, dessa vez uma doença pulmonar forçou a separação e resultou na morte de Alberto. Há três meses, a mãe de Maiara se trata de uma tuberculose.

Futuro, Vicentina vê para Tainara, que a ajuda nos serviços domésticos ou mesmo na busca por algumas frutas na feira de sábado na Tijuca. A filha mais nova cursou até a 1ª série do ensino fundamental e hoje está fora da escola. A promessa é de que voltará no próximo semestre. Para Maiara, a sentença é outra:

¿ A vida dela só faz afundar. Ela é rebelde, não tem jeito. Só quer saber de ficar com as colegas na rua. O que eu pude fazer, eu fiz.

Mesmo sem conhecer Vicentina ou Maiara, a juíza da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, Ivone Caetano, resume bem o caso:

¿ A família é a base de tudo. E passa por ela a solução para os jovens e as crianças de rua. Via de regra, eles vêm não só de famílias afetivamente desorganizadas, como socialmente desassistidas.l