Título: BODE ELEITORAL
Autor: CLÁUDIO WEBER ABRAMO
Fonte: O Globo, 11/07/2005, Opinião, p. 7

Acrise que as instituições brasileiras atravessam já tem seu bode: o financiamento de campanhas eleitorais.

Em nome do bode, os mecanismos que propiciam a ocupação do Estado por interesses privados, partidários ou simplesmente quadrilheiros estão sendo ignorados pela maioria dos principais atores e interlocutores. Políticos, cientistas idem, repórteres e comentaristas de veículos de comunicação batem o tempo todo na tecla do financiamento eleitoral como se este fosse o principal gerador de corrupção.

Já que a origem é essa ¿ segue o raciocínio ¿ resulta que a eliminação, ou redução, das motivações originadoras da corrupção estaria na alteração das regras de financiamento e de representação política. Acontece que o raciocínio está errado (fora que, a vigorar tal diagnóstico, o remédio seria a eliminação de eleições).

A corrupção não se origina da existência de interesses partidários, mas da existência de interesses privados. Ela resulta da combinação entre, de um lado, a ação do agente público (individualmente ou em quadrilha, partidária ou não) na busca de rendas adicionais e, de outro, o direcionamento da ação do Estado para satisfazer interesses privados, os quais podem ser individuais, empresariais ou setoriais. A combinação desses interesses, de que resulta prejuízo para o interesse coletivo, aproveita fragilidades da regulação e da gestão públicas. Essas fragilidades deveriam ser objeto prioritário da atenção neste momento de crise, e não a regra vigente de financiamento eleitoral.

É interessante observar que o principal argumento em favor do financiamento público de campanhas eleitorais (associado à votação em lista partidária fechada), a saber, a redução do poder econômico em eleições, não está sendo usado pelos campeões do financiamento público exclusivo. Conforme pode ser constatado a partir do projeto Às Claras, da Transparência Brasil (www.asclaras.org.br), no Brasil o grande eleitor é o dinheiro. Isso reduz a representação popular em eleições e sobrefavorece os interesses econômicos.

Em vez de focalizar esse aspecto instrumentalizador da disparidade de renda, quer-se convencer a galera de que o financiamento público de campanhas ¿eliminaria o caixa dois¿ e, com isso, a destinação dos processos de corrupção. Ora, o caso dos Correios e suas ramificações mostra que as operações escusas realizadas por agentes nomeados arbitrariamente para ocupar postos no aparelho de Estado giram principalmente em torno de caixa dois de partidos políticos, não de candidatos individuais. Proibir o financiamento privado de campanhas não teria qualquer espécie de efeito sobre o caixa dois de partidos, nem na ação predatória de agentes políticos e administrativos deixados a nadar de braçada num ambiente em que a prevenção e o controle são minimizados.

A combinação das motivações privadas de agentes públicos com interesses empresariais não é eliminável por qualquer legislação, continuaria a existir e encontraria formas de expressão, a saber, no caixa dois partidário. Com a desvantagem de que a visibilidade, ainda que parcial, que se tem do financiamento privado deixaria de existir. O financiamento privado continuaria a se manifestar, mas agora exclusivamente em caixa dois. O financiamento eleitoral não-escuso (porque declarado) seria tornado escuso. Grande solução.

O bode do financiamento público de campanhas está obscurecendo as razões institucionais e administrativas da corrupção, entre as quais estão a liberdade de nomear pessoas para ocupar cargos ditos de confiança e a esdrúxula situação da execução dos orçamentos, que no Brasil não é obrigatória, mas facultativa, gerando pressões e poderes corruptivos diretos e indiretos. A frouxidão e a desarticulação dos mecanismos de prevenção e controle da administração também estão sendo esquecidas, como se a corrupção fosse questão abstrata e não ocorresse nos processos concretos do Estado.

Tendo em vista a quantidade de contrabandos presentes na proposta de reforma política em discussão no Parlamento, melhor seria tirar esse bode da sala e buscar a real origem do mau cheiro que emana das instituições.

CLÁUDIO WEBER ABRAMO é diretor executivo da Transparência Brasil.