Título: Valério e seu fantasma de bolso cheio
Autor: Chico Otavio e Rodrigo Lopes
Fonte: O Globo, 14/07/2005, O País, p. 3

Ferroviário morto em 99 aparece como autor de saque feito em 2003

O ferroviário mineiro Jonas de Pinho morreu no dia 31 de dezembro de 1999, aos 81 anos, de choque séptico, pneumonia e doença pulmonar obstrutiva crônica, como atesta a sua certidão de óbito. Porém, relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) entregue à CPI dos Correios informa que, três anos e sete meses depois de sua morte, Jonas de Pinho aparece como responsável por um saque de R$152.875 da conta da agência SMP&B, do publicitário Marcos Valério, na agência Assembléia (Belo Horizonte) do Banco Rural.

A morte de Jonas foi comunicada no dia seguinte, 1º de janeiro de 2000, pelo securitário Carlos Augusto de Melo, ao cartório do 4º Subdistrito de Belo Horizonte, que expediu a certidão de óbito. Bancos de dados públicos confirmam a morte do ferroviário, cuja aposentadoria fora suspensa na data de sua morte, substituída por pensão paga até hoje a sua viúva, Marlene de Pinho.

Conta foi aberta três meses após a morte

O documento do Coaf, contudo, informa que, no dia 16 de julho de 2003, um cidadão que se apresentou como Jonas de Pinho forneceu o CPF do ferroviário (051297966-91) e sacou o dinheiro em espécie da conta da SMP&B (06002595-2). Como o valor era elevado, ele teve de declarar a razão do saque. Alegou que os recursos seriam destinados "ao pagamento de folha de pessoal". Curiosamente, a conta da agência de publicidade foi aberta no dia 31 de março de 2000, três meses depois da morte do ferroviário.

A CPI dos Correios vai investigar a suspeita de que documentos de Jonas foram usados em saques de dinheiro. O ferroviário deixou dois filhos, um deles também chamado Jonas, que trabalha na agência de publicidade mineira I-3. O senador Cesar Borges (PFL-BA), integrante da CPI, disse que convocará Marcos Valério para explicar o saque feito por Jonas.

Procurada em sua residência, no bairro Aeronáutica, em Lagoa Santa, na Grande Belo Horizonte, a viúva Marlene atendeu o interfone tentando se passar pela empregada doméstica e dizendo que a patroa não estava em casa, e que não sabia nada sobre a vida dela. Mas perguntada se poderia ir ao portão, se recusou e em seguida desligou o aparelho.

Filho do ferroviário reage com irritação

Por telefone, o médico Hércules Mendes de Pinho, filho mais velho do ferroviário e que mora com a mãe, reagiu irritado:

- Se minha mãe tiver algum problema de saúde, vocês vão se ver comigo - ameaçou.

Perguntado sobre o irmão, Jonas, desligou o telefone. Na agência I-3 Publicidade, a secretária limitou-se a informar que Jonas estava viajando e não sabia precisar qual cargo ele ocupava na empresa. Cerca de dez minutos depois, numa segunda ligação, a mesma secretária disse que não o conhecia e que não havia ninguém com aquele nome ali.

A maioria dos nomes que aparecem como responsáveis por saques das contas da SMP&B e da DNA no Banco Rural, entre julho de 2003 e abril de 2004, é ligada a duas agências de publicidade de Marcos Valério, mas há pelo menos dois que estão vinculados a políticos: Benoni Nascimento de Moura e Walquíria de Oliveira Rios. Benoni, que sacou R$255 mil no dia 10 de setembro de 2004, trabalha na corretora de títulos paulista Bonus-Banval, que também emprega Michelle Janene, filha do deputado federal José Janene (PP-PR). Walquíria foi assessora do ex-prefeito de Contagem Ademir Lucas (PSDB).

(*) Especial para O GLOBO

A POLÍTICA MAL-ASSOMBRADA

De vez em quando, a política brasileira assemelha-se a um castelo mal-assombrado, com fantasmas que ajudam personagens muito vivos a embolsar quantias que não lhe pertencem. As figuras do além foram decisivas no processo que levou ao impeachment de Fernando Collor de Mello. O esquema de corrupção descoberto pela CPI revelou que as contas do presidente eram pagas por seu tesoureiro, Paulo César (PC) Farias, por meio de uma conta bancária fraudulenta. Sua titular era Maria Gomes, na verdade "fantasma" de Ana Acioli, secretária de Collor.

O dinheiro retirado da conta era entregue por ela ao motorista Eriberto França, para pagar aos funcionários da Casa da Dinda (residência de Collor em Brasília), além de contas de luz, telefone e despesas eventuais. Personagem decisivo na queda do presidente, foi Eriberto quem denunciou as contas fantasmas, ligando Collor a PC, e desferindo o tiro de misericórdia no presidente à beira da deposição.

A partir do relato do motorista, o esquema foi sendo revelado. Um dos automóveis do presidente fora comprado com cheque de um "laranja" de PC, assim como a reforma da Casa da Dinda, no valor de US$2,5 milhões; Collor mentira ao afirmar na televisão que suas despesas pessoais não eram pagas por PC e tampouco explicara a origem dos recursos com que mantinha um padrão de vida ostensivamente superior ao compatível com sua renda oficial. Estava formado o cenário da queda.

Os fantasmas voltaram a Brasília em 2000, no processo que levou à cassação, anos mais tarde, de um parceiro de Collor, o ex-senador Luiz Estevão. Envolvido no escândalo de corrupção da construção do prédio do Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo, ele usava empresas e contas fantasmas nos Estados Unidos para esconder parte da fortuna de R$196 milhões desviada na obra. As assombrações desse caso chamavam-se Leo Green e James Tower, e sua descoberta foi fundamental para exorcizar o mandato de Luiz Estevão.

Legenda da foto: O PUBLICITÁRIO MARCOS Valério: um morto fez saque misterioso de mais de R$152 mil na conta da agência SMP&B