Título: O CALVÁRIO AFRICANO
Autor: AUGUSTO MARZAGÃO
Fonte: O Globo, 14/07/2005, Opinião, p. 7

O passado da África é contemporâneo dos primórdios da evolução da espécie humana. O presente aí está, com exceções expressivas como a da África do Sul, uma via-crúcis interminável de martírios e horrores que as perversidades, as patologias e os egocentrismos da civilização moderna têm logrado engendrar. E o futuro da África, particularmente a África Negra onde se amontoam os países abaixo da linha do Sahara? Por acaso, essa África sequer pode nutrir esperanças num futuro melhor do que o da sua trágica realidade dos nossos dias? Não há sinal visível no horizonte que assegure um avanço qualitativo ao menos capaz de tornar a pior farsa da imagem africana bem mais diferenciada do que o panorama de terra arrasada de hoje. Ressalva-se, porém, que o fato de que pode ser identificada uma dezena ou mais de nações africanas já libertas de um destino caótico não extermina as perspectivas de uma mudança de rumos reabilitadora em todo o continente, se nos colarmos à luz de estimativas de longo prazo. Não é uma visão de pessimismo ou de otimismo, mas de simples realismo global.

Em escritos anteriores já nos detivemos nos principais aspectos históricos e atuais que desenham o perfil dessa parte do planeta condenada ao um fado doloroso, tendo como algozes tanto os países desenvolvidos que promoveram sua exploração predatória e sua colonização subjugante como os próprios setores da população nativa que ajudaram a forjar o próprio inferno da dependência a senhores externos e das lutas ainda tribais ou da guerra civil não raro genocida. Cabe agora concentrar o foco das atenções no amanhã do continente órfão, fazendo coro com as vozes dos líderes mundiais e do pensamento humanístico dominante que estão aumentando as suas preocupações em torno da tragédia africana procurando sair do nível do campo inócuo das propostas abstratas para assumir posições calcadas na viabilidade tangível.

Parece muito pouco bater na tecla de soluções como a do perdão da dívida externa das nações mais pobres, da criação de fundos contra a miséria, a doença e o analfabetismo, e as manifestações solidárias muitas vezes apenas retóricas. Ao mesmo tempo é um difícil exercício de imaginação calcular quanto dinheiro de ajuda estrangeira, a fundo perdido, seria bastante para atender à imensa demanda de investimentos e de infra-estrutura de que necessita a África Negra para não só avançar substancialmente na exploração dos seus recursos naturais como para abrir novas frentes de desenvolvimento sustentável. Por isso mesmo a rica União Européia e os Estados Unidos se mostram tão vacilantes em seguir por esse caminho oneroso e de resultados duvidosos, inclusive porque entre as doações e os empréstimos e as fontes receptoras a corrupção local opera com desenvoltura.

Tudo indica que a redenção da África Subsaariana deverá se processar basicamente de dentro para fora, isto é, a partir das nações que compõem o hoje desarticulado cadinho de etnias, bastiões tribais, culturas, línguas, religiões, tipos de governo, situações climáticas, potenciais econômicos etc. Infelizmente, a dominação das metrópoles européias deixou como legado um mapa africano sem a preocupação de definir fronteiras que ao menos colocassem as múltiplas identidades nativas nos seus devidos habitats geográficos, estabelecendo assim conflitos étnicos, religiosos e outros dentro da mesma convivência colonial. E depois do ciclo da independência tardia, várias ex-colônias tentaram desastradamente copiar modelos políticos e ideológicos importados do mundo desenvolvido.

Evidentemente, o apoio externo será útil e indispensável, convocando organizações financeiras multinacionais como o Banco Mundial. Mas os estados carentes terão de socorrer-se de soluções endógenas, como a formação de blocos regionais de cooperação e integração. Estes se incumbirão de somar e complementar as potencialidades e energias nacionais que estejam dispersas ou operando por vias unilaterais ou concorrentes.

Seria extremamente ilusório admitir que a África Negra, ainda tão marcada por agudas manifestações de pobreza e desamparo, ainda tão primitiva em muitos cenários de sua realidade, possa sonhar com saltos de desenvolvimento e progresso equivalentes aos alcançados pelos chamados países centrais. O povo africano herdou, nesse sentido, obstáculos e distâncias que não foram de sua responsabilidade, mas de um fatal e discriminatório destino planetário.

Existe, entretanto, um largo espaço para as esperanças num futuro melhor e mais justo. Essas esperanças envolvem o compromisso de toda a Humanidade, a acreditarmos que os povos mais beneficiados deste mundo desigual não pretendem cultivar eternamente uma imensa reserva humana de sofrimento e perdição no planeta que deveria pertencer dignamente a todas as criaturas de Deus.

AUGUSTO MARZAGÃO é jornalista.