Título: A HORA DO OCULISTA
Autor: FERNANDO LATTMAN-WELTMAN
Fonte: O Globo, 14/07/2005, Opinião, p. 7

Ao contrário do que supõe o moralismo neo-udenista, o oportunismo, longe de ser um defeito, é na verdade uma qualidade indispensável ao jogo político. Sendo o tempo uma variável das mais decisivas na luta pelo poder, saber quando agir é uma das artes mais difíceis, e das que melhor nos revelam, na prática dos atores, seus objetivos maiores, assim como suas próprias índoles ou naturezas.

É por conta dessa dificuldade em lidar com o tempo que um dos fenômenos mais conspícuos da política é a chamada miopia, que equivale a manter um foco restrito a interesses imediatos, ou de curto prazo, e em que somente variáveis próximas e visíveis são relevantes. Outra doença comum, inversamente, é a hipermetropia: a dificuldade de enxergar o que está próximo, só vendo com nitidez as perspectivas mais distantes, ou futuras. Os riscos podem ser inversos aos do caso precedente, mas a realidade é a mesma.

Ora, é curioso perceber que na fauna política coexistem tendências ao padecimento de um ou outro mal, conforme o lugar ocupado pelo "doente" no espectro político ou ideológico. E não só isso: por conta de reviravoltas políticas, os sintomas podem até se inverter, passando o míope a só enxergar bem longe, enquanto o hipermetrope não consegue ir além do próprio umbigo.

Pois não é comum se notar freqüentemente, na prática de certas esquerdas, uma ênfase em estratégias que se referem a cenários futuros de transformação, que só os ditos hipermetropes conseguem enxergar? Enquanto, por outro lado, e geralmente do outro lado do ringue, a miopia parece estar sempre fazendo novas vítimas?

Não deixa de ser surpreendente que em meio à atual crise surja um manifesto da esquerda do PT, em que a tradição de hipermetropia é posta de lado em prol de um oportunismo míope: que acredita na oportunidade de ocupar espaços e ofertar apoio (necessário) ao presidente Lula, nesta hora difícil, apoio que, contudo, nos termos adotados - defendendo rompimento imediato e simultâneo com as políticas de aliança e de estabilidade econômica - mais se assemelha a um verdadeiro abraço de tamanduá! Como se não houvesse mais de um ano de mandato para o presidente, nem a possibilidade de reeleição em 2006.

Mais interessante, do ponto de vista patológico, contudo, é a súbita conversão dos míopes do outro lado em hipermetropes convictos. Pois a proposta, ventilada aqui e acolá, de pacto entre o governo e a oposição (leia-se PSDB), em torno da "governabilidade", e envolvendo o sepultamento do instituto da reeleição, já para 2006, parece ser típica de casos em que a ansiedade faz o paciente se lançar sofregamente no encalço do futuro.

Na verdade, não sei bem qual o mal maior a acometer, com certa regularidade, o tucanato: se miopia, hipermetropia ou amnésia. Sei apenas que é muito estranha essa proposta de se abrir mão, logo, do estatuto da reeleição - ainda mais depois de tanto desgaste para inseri-lo no nosso quadro institucional.

Digamos que o tremendo casuísmo convença os incautos de suas propriedades terapêuticas. Que conseqüências imediatas teria - além, é claro, de retirar já do cenário das futuras eleições o candidato central da disputa? Primeiro, inviabilizaria imediatamente o apoio no Congresso que o governo tenta, a duras penas, obter com o PMDB, deixando a metade pró-governo do partido a reboque da outra, que defende uma candidatura própria.

Não sei como a tal governabilidade poderia ser assim reforçada, ainda mais com os partidos da base aliada sob holofotes da CPI dos Correios. A não ser, claro, que o isolamento do PMDB não deixasse ao governo opção que não a de se tornar dependente da própria oposição.

Em segundo lugar, porém, o que se vislumbra com tal operação para amarrar o governo e afastar Lula do páreo -- sem depô-lo antes da hora ideal - é a reabertura de amplo espaço interno ao PSDB para definição de seu candidato. E externo, também, aberto inclusive a todo tipo de aventureiro. Em especial o que for mais apto a capitalizar o desencanto geral com o fim da ladainha ética petista.

De qualquer modo, para ninguém correr o risco de cortar hoje o galho onde vai ter de se sentar amanhã - ou antecipar a dor de cabeça que talvez nem precisará sentir, um dia - recomenda-se, além dos usuais prudência e caldo de galinha, uma rápida visita ao oculista.

FERNANDO LATTMAN-WELTMAN é cientista político.

Miopia e hipermetropia políticas são aflições comuns no cenário atual