Título: CÉLULAS-TRONCO E BOM SENSO
Autor: RENATO J. COSTA VALLADARES
Fonte: O Globo, 15/07/2005, Opinião, p. 7

Muito se tem discutido sobre o uso de células-tronco embrionárias. O fulcro da questão tem sido a inviolabilidade da vida humana, um valor ético construído ao longo de séculos e que se estende a fetos e embriões sob a forma de forte defesa da vida intra-uterina. Durante todo o tempo em que este valor foi construído nunca se cogitou da preservação da vida embrionária extra-uterina, pelo simples fato que esta vida não existia, devido a limitações técnico-científicas. Hoje, estas limitações estão superadas. O embrião extra-uterino é viável e as células-tronco embrionárias oferecem opções antes impensáveis. A questão é delicada e precisa ser abordada com muito bom senso.

Embora a ciência disponha de informações precisas, preferimos raciocinar de forma simples, usando informações menos exatas, mas que têm a vantagem de ser obtidas com alguma matemática elementar e um pouco de senso comum.

Partiremos do fato que, em geral, uma mulher ovula dos 15 aos 45 anos de idade. Como nestes 30 anos existem 360 meses e como a ovulação é mensal, concluímos que a mulher média é dotada pela Natureza de 360 óvulos, no mínimo. Para efeito de raciocínio, suponhamos que uma mulher extremamente prolífera tenha um filho por ano. Ao longo destes 30 anos ela terá 30 filhos. Conseqüentemente, em condições naturais, no máximo 30 óvulos (ou pouco mais) têm chance de dar origem a indivíduos. Como é bem sabido que um óvulo não fecundado morre, podemos concluir que a Natureza destina à morte uma grande quantidade de óvulos. O mesmo tipo de raciocínio mostra que a Natureza destina à morte uma quantidade ainda maior de espermatozóides.

Hoje, a fertilização in vitro pode interferir nos processos naturais e transformar em vida embrionária a vida de óvulos e espermatozóides que estavam destinados à morte pela Natureza. Em consonância com a evolução científica, os padrões éticos evoluíram nas últimas décadas e aceitam que isto seja feito para superar dificuldades de reprodução humana. É fato bem conhecido que, neste caso, embriões criados in vitro são implantados em úteros e, a partir daí, o processo natural os transforma em indivíduos. Entretanto, nem todos os embriões têm este destino. Por razões de natureza técnica, criam-se mais embriões do que é possível implantar. Os embriões não implantados são congelados e ficam esperando. Esperando o quê? A morte certa, com certeza.

São justamente esses embriões que se pretende usar nas pesquisas com células-tronco. Essas células se destinam a integrar organismos vivos para melhorar as condições de saúde. Isto significa que essas células, além de melhorar a vida do indivíduo que integrarão, viverão como parte deste indivíduo.

Vemos assim que em vez da inviolabilidade da vida humana que está vinculada à fertilização natural, a questão colocada pelas pesquisas com células-tronco é a seguinte: ¿A fertilização in vitro pode livrar óvulos e espermatozóides da morte certa, transformando-os em embriões que são indivíduos potenciais, mas parte deles está destinada à morte certa; será eticamente correto fazer com que células dos indivíduos potenciais que estão destinados a morrer continuem a viver integradas a outro indivíduo, cuja vida melhorarão?¿

Diariamente a Humanidade se pronuncia com um inequívoco ¿sim¿ em uma questão muito semelhante, quando, além de aceitar, estimula que órgãos de um indivíduo real destinado a morrer sejam transplantados para outro indivíduo cuja vida será melhorada e onde o órgão transplantado continuará a viver.

RENATO J. COSTA VALLADARES é professor de matemática.