Título: O VAZIO DO PODER
Autor: CARLOS ALBERTO RABAÇA e GUSTAVO BARBOSA
Fonte: O Globo, 24/07/2005, Opinião, p. 7

Um dos aspectos mais relevantes da presente situação nacional é a crise do poder. A cultura política em nosso país mostra-se frágil por não ter formado, ao longo das últimas décadas, alicerces institucionais de um Estado suficientemente imune à alternância de líderes e de programas, que caracteriza o jogo democrático. Se o brasileiro comum não faz distinção entre Estado e governo, muito mais preocupante é ver o quanto essas noções se confundem até mesmo entre os políticos. Isso faz com que o discurso dos palanques seja sempre dissociado da realidade a ser enfrentada no exercício do poder.

Acostumado a acreditar que basta ¿vontade política¿ para mudar o país, o eleitor acha natural a descontinuidade das equipes e das ações da administração pública a cada novo governo, pois essas mexidas são sinais de que ¿agora a coisa vai¿. Uma vez no poder, diante da inexperiência administrativa para operar uma máquina com peças emperradas e do desafio de conquistar adesões no Congresso para garantir governabilidade, os governantes lançam mão do patrimônio simbólico urdido nos palanques para ir tocando adiante o seu projeto de poder.

No entanto, faltam premissas e símbolos que configurem a consciência política dos cidadãos e a estabilidade do centro de poder, independentemente dos grupos políticos que estão no governo. A sociedade precisa ser constituída por valores perenes, referências sólidas que sustentem sua auto-estima como nação independente e digna. Esses fundamentos são esculpidos ao longo da História do país, na própria evolução do processo democrático, e não nos palanques ou nas campanhas publicitárias governamentais. Sem eles, o homem público é refém das pesquisas de opinião que moldam o cenário das próximas eleições, não há conduta política consistente, não há real cooperação entre os partidos, o universo político fica desarticulado, disforme, disparatado.

Vivemos hoje um grave momento em que os ocupantes dos postos de elevada hierarquia governamental e partidária tentam ocultar desencontros entre o discurso ético e a prática da política real. A República deixa de ser séria quando se transforma numa corrida inconseqüente de ficções verbais, de declarações que dissimulam interesses pessoais e ambições de grupos políticos. A retórica de mentiras e desmentidos, com suas armações, vacilações e dubiedades, é extremamente prejudicial e não condiz com a democracia que a nação brasileira tanto almejou resgatar.

Carecemos de um corpo político, no centro de poder, composto por um conjunto de pessoas dotadas de profunda compreensão das funções governativas, tanto em sua dimensão histórica quanto instrumental. Um centro de poder constituído por pessoas capacitadas ao exercício das funções de alta essencialidade na condução dos negócios públicos e que saibam lidar democraticamente com as resistências e divergências. As lideranças existem, mas atuam isoladamente. Não foram criadas as condições políticas para uma coordenação que possa vicejar um projeto de desenvolvimento nacional como tarefa transcendente do conjunto da sociedade.

Infelizmente, a crise atual está provocando na população um confuso sentimento de perplexidade e de orfandade política. Como um time desarticulado, assustado com as nuvens tempestuosas que se acumulam, equipes de governo distanciam-se do foco de suas funções e das metas que constituíam seu ideário político. Na tentativa de adequar seu discurso ideológico às responsabilidades de governo, formulam equações estranhas aos verdadeiros problemas econômicos e políticos do país. Os enunciados permanecem indefinidos: afinal, queremos viver num ambiente econômico liberal ou estatal? Até que ponto queremos realmente aperfeiçoar as leis trabalhistas e fiscais? Vamos de fato fazer uma reforma política?

Muito mais que a reforma política, é preciso propor uma reforma de Estado. Em nossa história, desde o Império, o poder gira em torno de um eixo central: o governo e seu chefe. As forças políticas, como representantes da sociedade, não lograram realizar um projeto coletivo, uma democracia realmente representativa dos diversos segmentos.

O Estado precisa ser reformado, já que os partidos são imprecisos e frágeis. É necessário que se promova um rearranjo estrutural, pois esgotou-se o cenário desenhado a partir do regime militar. O Brasil cumpriu, com maturidade, o ciclo de testes das forças políticas germinadas na segunda metade do século XX. Com a redemocratização, veio primeiro o PMDB, depois Collor, em seguida o PSDB e, por fim, a última força de oposição, a última desilusão de mudança fácil, o PT. Não se transforma o país por um simples ato de vontade. É preciso fazer uma ampla reforma no Estado, para só então se promover uma verdadeira reforma política. Aí sim, poderá haver coerência e clareza no trato de questões como a corrupção, as alianças interpartidárias e as finanças eleitorais, até hoje conduzidas, em grande parte, na obscuridade.

CARLOS ALBERTO RABAÇA é sociólogo e GUSTAVO BARBOSA é professor.