Título: Dirceu arma contra-ataque para salvar mandato
Autor: José Casado
Fonte: O Globo, 24/07/2005, O País, p. 10

Na sombra, o ex-todo poderoso chefe da Casa Civil conversa com criminalistas, aliados políticos e arapongas

BRASÍLIA. Quando ele aparece, vagueia solitário, sorumbático, olheiras aparentes, a bordo de um terno cinza e gravata idem, como se desejasse dissimular a presença entre as colunas, no plenário e sobre o tapete verde da Câmara dos Deputados.

Resta apenas sombra do poderoso ex-chefe da Casa Civil da Presidência da República, de quem nos últimos 30 meses os aliados só ouviam auto-referências (¿Estou aqui para resolver problemas, estou aqui para resolver crises¿) e os jornalistas só escutavam certezas (¿Vou repetir. Está gravado, eu gravo tudo o que digo: a lei vai ser cumprida¿).

¿ Nossa! Como ele está humilde agora. Veio até falar comigo. Será que está com medo de alguma coisa? Nem parece o mesmo ¿ surpreendeu-se a deputada Nice Lobão (PFL-MA), depois de ser cumprimentada por José Dirceu no café da Câmara.

Aos 59 anos, José Dirceu de Oliveira e Silva tornou-se um político integralmente dedicado a uma causa própria: salvar seu mandato, conquistado há 33 meses numa campanha encerrada com 556.300 votos ¿ ao custo de R$600 mil, segundo informou à Justiça Eleitoral. Perdeu-se na agenda de uma secretária o tempo em que o empresário Marcos Valério, reputado como operador do mensalão, preocupava-se em agradar-lhe:

¿ O José Dirceu quer provar da goiabada da Christy ¿ cobrava Marcos Valério, conta sua antiga secretária Fernanda Karina Somaggio.

Seis latas de goiabada Cascão

Em maio de 2003, ela registrou na agenda, o dono das agências DNA e SMP&B mandou-a comprar seis latas de goiabada cascão da Christy, famosa em Minas, e seis quilos de queijo regional, tipo exportação, para presentear Dirceu.

O ex-ministro agora é personagem recorrente nas investigações em curso no Congresso, por enquanto concentradas em Marcos Valério. Ele percebeu e começou a admitir o risco de perda do mandato em conversas com políticos e advogados a quem tem apelado por ajuda.

Nas últimas semanas, depois de um encontro com o presidente Lula, Dirceu recorreu a líderes do PMDB, como os senadores Renan Calheiros (presidente do Senado), Garibaldi Alves (relator da CPI dos Bingos) e José Sarney, ex-presidente da República. Consultou criminalistas como Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, e Arnaldo Malheiros. O amigo e advogado Antonio Carlos de Castro, o Kakay, desistiu de atuar na sua defesa.

Dirceu reluta, mas a marcha das apurações o arrasta ao ritual do depoimento público, sob suspeição, em três comissões: na terça-feira, 2 de agosto, vai à CPI do Mensalão; depois à CPI dos Correios e à CPI dos Bingos.

¿ Não vou deixar de ir a nenhum foro de investigação porque não devo, nem temo ¿ anunciou no último dos dois discursos que fez desde a chegada à Câmara, há 32 dias.

¿Quero saber quem está comigo e com o Genoino¿

No intervalo precisará se explicar ao partido, agora controlado por adversários ¿ os mesmos que venceu nos últimos 15 anos, como secretário-geral e, depois, como presidente petista. Ele organizou e controlou o PT ao melhor estilo stalinista. Há dois sábados, em São Paulo, entrou na reunião da executiva nacional disposto a enfrentar quem pedia a renúncia de José Genoino da presidência. Dedo em riste exigiu lealdade:

¿ Quero olho no olho. Tem que dizer aqui. Quero saber agora quem está comigo e com o Genoino.

Quando Elói Pietá, prefeito de Guarulhos, ponderou que a renúncia seria conveniente, a claque de Dirceu reagiu. No tumulto dois aliados de Dirceu, Vladimir Garreta e o deputado José Mentor, foram para cima de Pietá, que retrucou:

¿ Disputei duas eleições, ganhei e estou limpo. Vocês disputaram uma e estão sujos.

Genoino renunciou horas depois, quando chegou a notícia sobre a prisão no aeroporto de Congonhas do chefe de gabinete de seu irmão, deputado no Ceará, com uma mala recheada de reais e milhares de dólares na cueca.

No Congresso a pressão deve aumentar. O PTB do deputado Roberto Jefferson prevê para os próximos dias um pedido formal ao Conselho de Ética da Câmara para a cassação do mandato de Dirceu. A iniciativa seria de Jefferson, a quem o ex-chefe da Casa Civil escolhera como emblema de sua ¿visão aliancista¿ no início do governo Lula.

O ex-presidente do PTB, criminalista por formação, fez questão de introduzir Dirceu nos autos do Conselho de Ética e da CPI dos Correios citando-o como ¿chefe da quadrilha¿ de dirigentes petistas envolvidos com corrupção, lavagem de dinheiro e compra de votos no plenário do Congresso.

Duelo entre dois tipos narcíseos

É um duelo nas sombras entre dois tipos narcíseos, ressentidos, adversários ideológicos, com predileção por acordos de bastidores ¿ embora poucas vezes bem-sucedidos.

Dirceu se move no Congresso e no governo com a meticulosidade de quem se preocupa em construir uma defesa coordenada com a do ex-tesoureiro petista Delúbio Soares, o ex-secretário do partido Sílvio Pereira e seus antigos assessores Waldomiro Diniz e Marcelo Sereno. Foi uma das sugestões que ouviu recentemente, para limitar a ação de adversários em busca de eventuais provas nessa etapa do processo político. ¿Não conseguiram encontrar indícios nem provas¿, reafirmou em nota, sexta-feira.

A tática resultaria na condução do caso aos tribunais onde ¿ ao contrário da arena política ¿- a premissa sempre é a presunção de inocência. Foi com olhos no embate judicial que inspirou a liderança do PT a escolher um relator com experiência jurídica para a CPI do Mensalão. Da lista submetida ao líder governista no Senado, Aloizio Mercadante, resultou a escolha do deputado Ibrahim Abi-Ackel (PP-MG), ministro da Justiça do governo do general João Figueiredo.

Dirceu não abandonou o antigo hábito de coletar informações. Apóia-se em um pequeno grupo com vínculos na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e na Polícia Federal. Enquanto esteve na Casa Civil, praticamente comandou a Abin. Nos últimos meses mantinha até dois despachos diários com o recém-demitido chefe da agência, Mauro Marcelo de Lima e Silva.

Há muito ele cultiva o gosto pelo mundo dos códigos e operações encobertas ¿ herança dos tempos de militante radical da Dissidência, da Aliança Libertadora Nacional e do Movimento de Libertação Popular (Molipo), a derradeira iniciativa do setor internacionalista do Partido Comunista Cubano na América Latina.

Sobre a própria crise de identidade, ironia

Há três semanas até se permitiu uma ironia sobre uma permanente crise de identidade:

¿ Descobri que sou dois: eu e o personagem Zé Dirceu ¿ disse a jornalistas.

Durante muito tempo o ¿Zé Dirceu¿, como gosta de ser chamado, não existiu. No lugar do radical e ex-preso político, filho de Castorino Oliveira e Silva e Olga Guedes da Silva, quem se esgueirava pelas sombras, na luta pela sobrevivência sob a ditadura militar, era outra pessoa. Carregava a identidade de Carlos Henrique Gouveia de Melo, dissimulado sob a cobertura de empresário do ramo de confecções no Oeste do Paraná.

Quem conheceu ambos garante que Carlos Henrique voltou a operar na clandestinidade em torno da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Em manobra nos bastidores, tenta salvar ¿Zé Dirceu¿, desta vez encarnado na pele de um deputado federal cujo mandato está ameaçado.

COLABORARAM Regina Alvarez, Gerson Camarotti e Lydia Medeiros

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