Título: O tesoureiro que alardeava livre acesso ao poder
Autor: Gerson Camarotti e Rodrigo Rangel
Fonte: O Globo, 24/07/2005, O País, p. 12

Antes de ser forçado a deixar o cargo por causa do escândalo do mensalão, Delúbio exibia proximidade com o Planalto

BRASÍLIA e SÃO PAULO. Nos últimos dias, o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares apresentou versões contraditórias sobre a avalanche de denúncias da qual virou protagonista. Mas pelo menos num fato Delúbio não mentiu: ele tinha livre acesso aos corredores do poder e alardeava sua amizade com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Costumava impressionar seus interlocutores ao demonstrar que tinha portas abertas não apenas no Palácio do Planalto, mas também no Alvorada e na Granja do Torto. Era também freqüentador de comitivas presidenciais.

Na semana passada, O GLOBO ouviu oito pessoas entre assessores, parlamentares e dirigentes petistas com acesso ao Planalto, ao Alvorada e ao Torto. Todos confirmaram que Delúbio freqüentava os palácios, inclusive nas peladas no Torto.

Em alguns relatos, parlamentares petistas mostraram-se surpresos com o excesso de intimidade demonstrado por Delúbio em conversas com pessoas de fora do núcleo próximo do presidente. No dia 27 de março, quando assistia ao jogo da seleção brasileira contra o Peru, no Estádio Serra Dourada, em Goiânia, Delúbio fez um convite inusitado a um dirigente esportivo. O Brasil tinha acabado de derrotar a seleção peruana por 1 a 0.

¿ Quando você vai aparecer para jogar futebol lá na Granja do Torto? ¿ convidou o ex-tesoureiro, com naturalidade. Quem estava próximo de Delúbio estranhou o convite.

¿Ele exagerou na dose¿, diz petista

Era com conversas desse tipo que Delúbio aproximava-se de empresários para tentar obter recursos para o PT e aliados. Nesses encontros, relatados por dois empresários, Delúbio costumava ser direto: dizia que era ele quem falava pelo governo.

¿ O que o Delúbio fez foi errado. Ele exagerou na dose. Você não pode usar a amizade com um presidente para tirar benefício pessoal ou mesmo partidário. Sou amigo de Lula e também visito o presidente no Alvorada e no Torto. Mas nunca tirei proveito disso. Ele traiu a confiança de Lula ¿ diz o deputado Devanir Ribeiro (PT-SP).

A credibilidade de Delúbio junto aos empresários foi cuidadosamente construída pelo ex-tesoureiro em aparições públicas constantes ao lado do presidente desde a transição. No fim de 2002, foi presença constante na Granja do Torto, onde Lula ficou hospedado antes de tomar posse.

Em 2003, era um assíduo passageiro em viagens oficiais de Lula. Em abril daquele ano, parlamentares que acompanhavam Lula numa viagem a Mato Grosso do Sul ficaram espantados com a intimidade de Delúbio com o presidente durante o vôo. O ex-tesoureiro ficou o tempo todo na cabine presidencial, no sofá, ao lado de Lula. Os dois fumavam cigarrilha e conversavam como grandes amigos.

¿ Quando entramos na cabine presidencial, lá estava o Delúbio fumando uma cigarrilha com Lula. Não havia protocolo entre os dois. Delúbio estava à vontade ¿ conta o deputado Murilo Zauith (PFL-MS), que não conhecia, até então, o tesoureiro petista.

Em maio de 2003, fazendeiros mineiros também ficaram impressionados com a proximidade entre Lula e Delúbio, durante a ExpoZebu, em Uberaba (MG). Delúbio ficou numa mesa próxima do presidente e levantava-se o tempo todo para falar ao ouvido do presidente.

Em novembro do mesmo ano, sem cargo no governo ou agenda a cumprir na África, o então tesoureiro do PT integrou a comitiva oficial do Brasil como convidado de Lula. Na Namíbia, chegou a se sentar à mesa da delegação oficial na reunião bilateral com o governo local.

¿ Qual o problema? Não sou ladrão! Represento uma entidade, o PT ¿ alegou Delúbio.

Naquele mesmo mês, de volta ao Brasil, Delúbio foi flagrado repassando ao presidente, por debaixo da mesa, uma cigarrilha holandesa durante encontro com sem-terra em Brasília.

¿ Quem segura escondido cigarro para o presidente é íntimo dele e capaz de esconder qualquer coisa que ele peça. O Delúbio mostrava intimidade com Lula a ponto de permitir que ele acendesse o seu cigarro publicamente. Espero que Lula tenha separado a amizade com Delúbio das negociatas que ele fez pelo PT e pelo governo ¿ diz o líder da minoria, José Carlos Aleluia (PFL-BA).

Em Buriti Alegre (GO), terra de Delúbio, o então tesoureiro petista se gaba de ser bem próximo do presidente. É comum ouvir referências a ele como "secretário do presidente". Na sala da modesta casa onde moram os pais de Delúbio, eles fazem questão de ostentar a amizade do filho ilustre com o presidente. Seu Antônio Soares de Castro e dona Jamira têm uma foto em que figuram ao lado de Lula e de dona Marisa. O retrato foi feito pelo fotógrafo do Planalto em visita do casal ao Torto.

Em junho, no início da crise, numa reunião da executiva nacional do PT, ainda como tesoureiro, Delúbio contou que Lula lhe oferecera uma diretoria em qualquer estatal de sua escolha. Em outra reunião, disse que José Genoino colocara como condição para assumir a presidência do PT sua permanência como tesoureiro. Genoino ouviu em silêncio, sem retrucar.

O prestígio de Delúbio com Lula se consolidou apenas com a eleição em 2002, graças a seu desempenho na campanha presidencial: foi ele o artífice da arrecadação de mais de R$48 milhões para o PT na campanha que elegeu Lula presidente.

Embora gostasse de se gabar da amizade com o presidente, o ex-tesoureiro nunca pertenceu ao pequeno círculo de amigos de Lula. A relação era partidária e de tesoureiro e candidato.

¿ Dentro do PT, o presidente sempre teve apenas dois grandes amigos íntimos: Gilberto Carvalho (secretário particular do presidente) e Luiz Gushiken (ex-ministro). Com os demais, Lula só mantém relações políticas. Algumas mais estreitas, como já foi com (o deputado) José Dirceu ¿ diz um dos coordenadores das campanhas de 1998 e 2002.

Outro amigo do presidente lembra que Delúbio era inexpressivo no partido até 1999.

¿ Nunca vi Lula e Delúbio juntos antes de 2002. Em 1983, por exemplo, ambos freqüentavam o Congresso como interlocutores sindicais, mas separadamente ¿ diz um fundador do PT, íntimo de Lula.

¿ Foi graças ao Dirceu que Delúbio saiu do anonimato. Delúbio era homem da confiança de Dirceu, que o escolheu como tesoureiro ¿ diz o petista.

Do menino pobre, ficou pouco. Delúbio foi sindicalista e professor de matemática, mas desde 2002 não conseguia mais disfarçar o refinamento do estilo de vida, para desespero de membros da cúpula do partido.

Ano passado, o deputado Chico Alencar (PT-RJ) propôs que o PT fizesse uma prestação de contas em tempo real.

¿ Transparência demais é burrice ¿ reagiu Delúbio.

¿ Eu, como membro do diretório nacional, deveria ter tido mais atenção ¿ diz hoje Chico Alencar, contando ter brigado com Delúbio na época.

Delúbio integrava, ao lado do ex-secretário-geral Sílvio Pereira e do ex-presidente José Genoino, o núcleo de poder petista ligado diretamente ao Planalto e comandado pelo ex-ministro Dirceu. Sílvio e Genoino não eram tão assíduos no governo. Genoino dizia sempre que apenas seguia determinações. Na cúpula, era considerado um soldado de Lula e Dirceu.

No início do ano passado, Delúbio falou sobre suas relações com o governo:

¿ Falam que eu converso muito com o Zé Dirceu. Claro que converso. Eu e o Zé Dirceu assinávamos juntos cheques da campanha, cheques do partido, durante anos e anos. A responsabilidade minha era do tamanho da dele nas finanças do partido. Se eu não tivesse várias idéias e propostas, não teria ocupado as funções que ocupei.