Título: Crítica à PF é uma postura 'altamente elitista'
Autor: Jailton de Carvalho
Fonte: O Globo, 24/07/2005, Economia, p. 32

Diretor da Polícia Federal rebate ataques da Fiesp e OAB por operação que levou à prisão dos donos da Daslu

BRASÍLIA. Com a calma de arqueiro zen que cultiva desde o início da carreira, o diretor da Polícia Federal, delegado Paulo Lacerda, reage às críticas da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contra as operações da PF na Daslu. Segundo ele, os ataques partem dos mesmos setores que apóiam e até estimulam as incursões que a Polícia Federal costuma fazer na Galeria Pagé e no Shopping da Rua 25 de Março, em São Paulo, áreas de compras da população de baixa renda.

Para o diretor, esse tipo de reação está relacionada a uma visão elitista, que não tem mais espaço no Brasil de hoje. Paulo Lacerda argumenta também que as críticas à PF são genéricas e sugere que, se alguém tem alguma queixa específica, represente contra os supostos abusos na Justiça ou encaminhe a denúncia à Corregedoria da própria Polícia Federal.

Por que os donos da Daslu foram presos?

PAULO FERNANDO DA COSTA LACERDA: O caso da Daslu é idêntico ao da cervejaria Schincariol. É uma investigação de sonegação fiscal de grande vulto, que tem implicações outras que não apenas a sonegação. Existem ali evidências de lavagem de dinheiro, evasão de divisas. Isso já vem demonstrado em processos fiscais da Receita Federal, que trabalhou muito bem, fez um longo trabalho de inteligência, o processo e, depois, tentou os mecanismos de cobrança. E, ao constatar que aquele tipo de incidência extrapolou o âmbito fiscal, encaminhou ao Ministério Público Federal, que solicitou à Polícia Federal (PF) o prosseguimento das investigações. E o que a PF constatou foi um grupo de pessoas que vinha fazendo aquilo de forma sistemática. Em paralelo à sua atividade regular de comércio, há uma atividade ilícita, uma estrutura.

Algumas pessoas criticaram a operação, dizendo que vários sonegadores estão aí na praça e não foram presos. Por que outros sonegadores não são presos?

LACERDA: Basta aguardar que estes outros grandes sonegadores serão presos no momento oportuno. As investigações estão sendo feitas de forma responsável, de modo que não se utilizem ações açodadas, antes de comprovar que aquilo está acontecendo de maneira sistemática. O que nós estamos tratando aqui não é aquele simples não-pagamento de tributos.

Qual é a diferença do não-pagamento de tributos para o caso da Daslu?

LACERDA: Sonegação fiscal, que é crime. O não-pagamento de tributo é uma mera dívida, que deve ser cobrada pelos meios processuais cíveis.

Sonegação envolve então o uso de artifícios para sonegar?

LACERDA: Geralmente, os grupos que usam essas práticas estão envolvidos com evasão de divisas. É o caixa dois agregado com vícios criminosos de lavagem de dinheiro, com formas de ocultação com notas fiscais frias, documentos fraudados e, muitas vezes, fraudes na exportação dos produtos com empresas de fachada lá fora. É uma estrutura criminosa criada para burlar, de modo que as autoridades fazendárias se sentem impotentes. Então, a Polícia Federal atuou nesses dois casos e atuará em todos os outros casos quando estiverem completas as investigações (da Receita Federal) que digam respeito a essa modalidade criminosa.

Dirigentes da Fiesp e da OAB fizeram manifestações contra o que consideraram abuso de autoridade. As prisões eram desnecessárias?

LACERDA: A Polícia Federal faz, há tempos, uma, duas três vezes por ano, semelhante trabalho na Galeria Pagé, em São Paulo, no shopping da rua 25 de Março, do Law (Kin Chong, o empresário chinês naturalizado brasileiro apontado como um dos maiores contrabandistas do país). Esse pessoal sempre aplaude. Agora, Daslu é Daslu. O shopping da 25 é outra história. No fundo é a mesma coisa, é o mesmo tipo de crime que está sendo imputado a eles. Qual é a diferença dos investigados no caso do Law para os investigados no caso da Daslu? Eu gostaria que me dissessem.

O senhor quer dizer que não existe bom sonegador?

LACERDA: A diferença, talvez, é que um é mais sofisticado do que o outro nos mecanismos. Eu queria que a Fiesp, se fosse justa, e outras entidades tivessem a mesma preocupação quando nós fazemos outras operações. Nunca vi uma entidade dessas reclamar quando as operações envolvem camelôs, como as que são feitas em Foz do Iguaçu. Pelo contrário, até estimulam que façamos repressão contra os ônibus (que transportam sacoleiros). Isso é uma postura altamente elitista, uma visão que não se coaduna com a realidade em que vivemos.

Ultimamente têm surgido críticas contra as buscas em escritórios de advocacia e contra prisões temporárias. A polícia está exagerando?

LACERDA: Sempre digo que podemos errar. Mas estamos tentando evitar erros, procurando fazer uma polícia técnica, preparada, que não olhe o nível social de quem está tratando. Devemos dar o mesmo tratamento civilizado. Eu não vi na legislação brasileira ainda - e nem poderia existir - um preceito que dissesse que, segundo o nível da pessoa, aplica-se tal lei. A lei é de caráter geral e vale para todos. O que está acontecendo é que nós, agora, estamos trabalhando muito em cima desses grupos que fraudam licitações, sonegam, cometem crimes de corrupção, que são grupos da chamada elite econômica, financeira, empresarial do país. Quando você pinça um ou outro, dá uma repercussão muito grande. Não é a pedagogia da força que queremos usar. É a pedagogia da não-impunidade. Pedagogia da punição, para que não se diga que o Brasil é o país da impunidade.

O senhor defendeu a importância da prisão temporária. Mantém sua opinião?

LACERDA: Nós já a usamos há bastante tempo para certos tipos de crimes, como o tráfico de drogas, e agora entendemos que a prisão temporária se aplica bem aos demais crimes. Quando você trabalha numa investigação, chama as pessoas para serem ouvidas, elas não vão. Vão primeiro ao advogado, que as orienta e elas passam a ter respostas para tudo. Nós temos inquéritos que ficavam rodando dez anos e você não conseguia ouvir as pessoas. Hoje, com autorização judicial e anuência do Ministério Público, fazendo um trabalho de inteligência por um ou dois anos, de cem pessoas que são o alvo inicial, se reduzem para 15, dez. E, com essas, fazemos buscas domiciliares com autorização judicial e realizamos os depoimentos. Às vezes precisamos também fazer acareações, como aconteceu no caso da Daslu. A dona foi solta, mas teve que voltar lá dois dias depois. Com essas pessoas presas, surge pressão até de entidades que deviam nos apoiar. Imagina se elas estivessem soltas? Teriam toda liberdade para fazer, acontecer, pressionar. A maneira que o Brasil tem para vencer a impunidade é endurecer. Utilizamos os instrumentos legais permitidos em nossa legislação. Qualquer pessoa que tenha notícia de alguma violação da PF deve representar judicialmente, na polícia, no Ministério Público.

Algumas pessoas disseram que a operação era um manobra do governo para esconder os problemas na esfera federal.

LACERDA: Estou na direção da PF há dois anos e sete meses e nunca houve nenhuma interferência ou pressão. Acho que a Polícia Federal nunca trabalhou com tanta autonomia operacional. Eu informo ao ministro (Márcio Thomaz Bastos, da Justiça) sobre essas operações no dia em que elas ocorrem, de manhã, para que ele não saiba pela imprensa. Isso pode parecer uma contradição num momento em que o governo está com tantos problemas, CPIs. Mas é uma realidade. Se isso não fosse verdade, eu não estaria falando. Se existe alguma pressão, ela vai ao ministro, mas nunca chega aqui. Como ele nunca me informou sobre pressão, eu imagino que não existe.

Foram mobilizados 250 homens na operação Daslu. Isso não é um exagero?

LACERDA: Existe um exagero da avaliação daqueles que criticaram: 250 é o número de policiais em todo o contexto da operação, que envolveu cinco ou seis estados. Na Daslu, por ser um shopping de três ou quatro andares, vinte mil metros quadrados, é lógico que exigiu um aparato maior. Quando se vai num lugar como esse, se você chegar para os seguranças e disser "senhor, por favor, eu quero entrar aqui", ele vai te peitar. Então tem que chegar com um aparato para eles entenderem e facilitarem o trabalho. Alguns são até presos. Isso é regra de segurança no mundo inteiro porque existe a reação inesperada. Quando você se defronta com seguranças, e essas pessoas da elite normalmente têm dois, três, se você não chegar de modo a render a pessoa, você vai ter uma série de incidentes trágicos. Aí estaríamos lamentando o despreparo da Polícia. Mas a Daslu está situada a 500 metros da favela Coliseu. Se tivéssemos entrado com aquele aparato na favela, a turma toda estaria aplaudindo. O problema que se mencionou do aparato é porque não estamos acostumados a punir crimes praticados pela elite no Brasil. E, quando fazemos, tem uma reação desproporcional. Temos que lembrar que a grande maioria dos empresários, da sociedade, é honesta, não compactua. Portanto, é um grupo pequeno que fica reagindo.

Mas o uso da algema, outro ponto criticado por alguns setores da sociedade, é mesmo necessário?

LACERDA: Os policiais devem agir em razão das circunstâncias com que se deparam. Não podemos, com um almanaquezinho, dizer que é assim ou assado. Você tem que ter um balizamento geral. No momento é que se vai verificar qual o tipo de atitude a tomar, usar ou não algemas, se vai usar armas longas, qual o tipo de aparato.

'Qual é a diferença dos investigados no caso do Law (Kin Chong, empresário chinês acusado de contrabando) para os investigados no caso da Daslu? Eu gostaria que me dissessem'

'Nunca vi uma entidade dessas reclamar quando as operações envolvem camelôs, como as que são feitas em Foz do Iguaçu. Pelo contrário, até estimulam que façamos repressão'