Título: Imigrante nato, com raízes fincadas em Minas
Autor: Paulo Marqueiro
Fonte: O Globo, 25/07/2005, O Mundo, p. 20

Tomada pela revolta, família lembra que Jean sonhava com vida melhor no exterior, mas já pensava em voltar ao Brasil

GONZAGA, MG. "Mãe, um dia nossa vida vai mudar". A frase, dita por Jean Charles de Menezes à mãe, Maria Otoni de Menezes, de 60 anos, antes de morar no exterior, resume o espírito do jovem ambicioso e sonhador, que deixou a pequena cidade de Gonzaga, em Minas Gerais, para tentar uma vida melhor em Londres. Foi com lágrimas nos olhos que Maria contou ontem de manhã, em seu sítio em Gonzaga, a promessa que o filho fizera. Maria estava confortada pelos parentes e por amigos que lotavam a casa modesta da família.

- Parece que eu estava tendo uma visão. Durante a semana toda pensei no meu filho. Eu acordava e via a imagem dele. Tinha medo de que acontecesse alguma coisa com ele. Estava para telefonar para ele, pedir para que se afastasse de lá durante esses atentados.

Jean tentara imigrar para os Estados Unidos

Jean, na descrição da família e de seus amigos, era um jovem batalhador, que queria crescer e ganhar dinheiro. Até os 17 anos, morou com os pais numa casa de pau-a-pique na área rural de Gonzaga, cidade a cerca de cem quilômetros de Governador Valadares. A mãe conta que desde menino seu sonho era ser eletricista. Depois de fazer um curso por correspondência, começou a consertar eletro-eletrônicos por conta própria. Aos 18 anos, foi morar em São Paulo, onde já vivia o irmão Geovane. Foi lá que Jean ganhou experiência como eletricista.

A idéia de sair do país era antiga. Inicialmente, queria ir para os Estados Unidos, seguindo os passos de muitos jovens da vizinha Governador Valadares. Segundo a mãe, o plano só não foi concretizado porque ele não obteve o visto.

- Ele dizia: se Deus me ajudar, vou para os Estados Unidos. Quero ajudar a senhora e o papai. Mas ele foi reprovado na entrevista e ficou muito triste. Então uma amiga dele de São Paulo disse que tinha dois irmãos em Londres e se ele quisesse poderia ajudá-lo a ir para lá.

Jovem tinha planos de deixar Londres

Jean embarcou para Londres há cerca de três anos. Com o dinheiro que ganhava como eletricista, pagava um curso de inglês, já que tinha apenas noções básicas da língua. Ele morava com os primos Alex, Vivian e Patrícia - que foram para a Inglaterra depois dele - e com outras duas jovens de Belo Horizonte. Durante esse tempo, esteve duas vezes no Brasil. A última foi para passar o aniversário, em 7 de janeiro deste ano. Ficou cerca de três meses.

- Ele disse, mãe, tenho que voltar, porque estou perdendo dinheiro aqui. Lá eu estaria ganhando. Então em abril ele voltou. A situação dele em Londres era legal. Ele não estava ilegal.

A família recebeu a notícia sábado, quando uma médica da cidade foi até o sítio para informar sobre a morte de Jean.

- Ela chegou aqui perguntando como estava a minha pressão - contou o pai, Matosinho Otoni da Silva, de 66 anos, pedreiro aposentado. - Vi logo que não era coisa boa. Quando ela deu a notícia, o mundo acabou para mim.

De acordo com o pai, Jean não pretendia ficar a vida toda em Londres:

- Da última vez, ele me disse: ô meu pai, vou trabalhar mais uns dois anos para ganhar um dinheirinho e depois eu volto. Ele tinha os sonhos dele. Queria comprar uma casa.

Ainda sem ter informações precisas sobre o que aconteceu com o filho, a mãe de Jean criticou a ação da polícia inglesa:

- Espero que esse policial seja punido. Para mim ele foi um covarde. Não agiu com honestidade. Agiu como um policial ruim. Tirou a vida de um inocente. Acabou com a vida do Jean e também com a minha e a do meu marido. Não o perdôo de jeito nenhum.

De acordo com a família, quando Jean foi morto estava com um casaco e uma mochila onde levava ferramentas de trabalho. Para os pais, o rapaz não tinha motivos para fugir.

Em Gonzaga, o clima era de revolta. José Gonçalves de Menezes, primo de Jean, pichou a fachada da casa com letras vermelhas: "Inglaterra, o terror. Jean, exemplo de honestidade vem do berço".

- Queria mostrar meu profundo sentimento de revolta pela morte do Jean. Não encontrei outro jeito de expressar minha indignação. Jean era um rapaz inteligente, amigo. Não havia quem não gostasse dele.

Professora de Jean no ensino fundamental, Maria Gomes de Oliveira, conhecida como professora Helena, lembra do empenho do menino durante as primeiras séries:

- Ele não faltava às aulas, era interessado e muito inteligente. O que chamava a atenção é que ele já gostava de fazer experiências, mexer em rádio. Vivia inventando coisas. Nunca tirou nota vermelha.

Adair Otoni de Oliveira, marido de Helena e padrinho de Jean, mostra os presentes que o afilhado trouxe de Londres na última visita a Gonzaga: uma garrafa de uísque, um relógio digital que enfeita a mesa da sala de jantar e um par de botas.

Na cidade tranqüila, a agitação nas ruas denunciava que alguma coisa estava fora da ordem. Na estrada que conduz ao sítio da família, na localidade de Córrego do Rato, em Gonzaga, o vaivém de pessoas foi constante durante todo o dia. Eram parentes e conhecidos que queriam mostrar solidariedade.

Os pais dizem que gostariam que Jean fosse enterrado no cemitério de Gonzaga, cidade onde viveu a maior parte de sua vida e onde estão seus amigos e parentes.

- Ver o corpo dele, pelo menos, já consola um pouco - diz o pai.

As reações

"Revoltante. A polícia britânica se deixou influenciar pelo pânico. Isso não é admissível."

CARLOS PENA, brasileiro que mora no Reino Unido

"Sinto muito pelo acontecido, mas sinceramente acho estranho alguém correr da polícia sem ter culpa. Acho triste o incidente mas infelizmente a polícia agiu certo."

ANN GIBB, britânica, moradora de Londres

"Qual seria sua reação se fosse perseguido por estranhos (sem uniforme policial) apontando uma arma para sua cabeça? Toda a comunidade brasileira em Londres está chocada."

MARCELO DE SOUZA, brasileiro que mora no Reino Unido

"A polícia está certa em atirar em algum suspeito para evitar a morte de dezenas ou centenas de pessoas. Quem vive aqui precisa se acostumar a colaborar com o novo e necessário esquema de segurança."

ERNEST DOLL, britânico, morador de Londres

"Estou chocada e envio o meu pesar à família deste rapaz. Não tenho nem palavras para expressar meus sentimentos."

CARLA ALMEIDA, brasileira que mora no Reino Unido

"A morte de inocente é um fato para se lamentar. A polícia precisa investigar o incidente, para evitar novas injustiças."

PAUL DINES,britânico, mora em Londres

Data=25.07.2005; Editoria=O_Mundo; Caderno=Primeiro_Caderno; Página=20; Edicao=2; Book=pp:Primeiro_Caderno;

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Família entrará na Justiça contra Scotland Yard

Uma das principais advogadas de direitos humanos do mundo pode assumir o caso

LONDRES.A família do brasileiro Jean Charles de Menezes confirmou ontem que deverá entrar na Justiça britânica contra a polícia de Londres pelo seu assassinato, na sexta-feira. O primo dele, Alex Alves Pereira, que foi quem reconheceu o corpo do brasileiro assassinado no sábado, disse ontem que o caminho legal será tomado.

- Acho que a família vai querer processar, sim. Porque nós somos brasileiros. Mostramos alegria para esse país, nós não mostramos guerra para esse país. É a imagem que eles têm do Brasil. - disse ele ao Fantástico, da Rede Globo. - Então agora vamos fazer a coisa em paz, mas vão ter que pagar, sem matar mais gente.

Segundo Pereira, a Scotland permitiria que ele assistisse hoje às imagens de vídeo das câmeras do circuito interno de TV da estação de metrô Stockwell.

- Eles cometeram um erro gigante. Eles não têm, não existe explicação para o que aconteceu - afirmou Pereira.

No processo, a família de Jean Charles poderia ter a seu lado uma das mais conhecidas advogadas ligadas aos direitos humanos do mundo. Um amigo da família indicou Gareth Peirce e ela visitou ontem à noite o hotel em que os primos de Menezes estão hospedados. Ela passou mais de uma hora reunida com eles. Embora a advogada não tenha falado com a imprensa, sua aparição sugere que uma batalha judicial pode estar por vir, não apenas relacionada diretamente ao caso do brasileiro.

Afinal, Peirce fez sua fama na defesa de clientes irlandeses acusados de envolvimento com os crimes do Exército Republicano Irlandês, o IRA. Seu caso mais famoso é o dos chamados "Quatro de Guildford", em que anulou a condenação de quatro pessoas acusadas de terrorismo. Foi uma vitória que ficou famosa e se tornou o tema do filme "Em nome do pai". Defendeu mineiros presos durante a greve nacional dos anos 80 e em 2004 assumiu o caso de Moazzam Begg, muçulmano britânico que passou quase dois anos na prisão de Guantánamo e que alega ter sido torturado por soldados americanos.

Dois dias depois da morte de seu primo na desastrosa ação da polícia de Londres, Alex Alves Pereira também chegou ontem à estação do metrô de Stockwell sob perseguição. No seu caso, de fotógrafos e cinegrafistas que documentavam a emocionante reconstituição dos últimos passos de Jean Charles, feita pelo estudante, que ainda enfrentou a intolerância dos funcionários da estação e o assédio indecoroso de um jornalista de um tablóide sensacionalista, que oferecia dez mil libras por uma entrevista exclusiva.

- É um momento difícil, mas eu tinha que vir aqui. Mostrei para vocês que houve muitas chances de meu primo ter sido abordado ou revistado. A polícia britânica foi incompetente. Tinha de matar alguém para mostrar serviço à população - desabafou.

Com os olhos vermelhos de chorar e de cansaço (ele diz estar sem dormir desde sexta-feira), Alex se emocionou com as homenagens deixadas à porta da estação, como buquês, velas e cartazes com condolências. De manhã, ele já havia participado de uma vigília no local com a prima Patrícia, que morava no mesmo apartamento de Menezes. (F.D.)

Legenda da foto: ALEX PEREIRA, primo de Jean Charles