Título: `É PRECISO DEIXAR DE LADO A HIPOCRISIA QUE CERCA A AIDS¿
Autor: Roberto Jansen
Fonte: O Globo, 28/07/2005, O Mundo/ Ciencia e Vida, p. 34

No Rio, diretor do Unaids diz que pobreza e violência sexual são as maiores causas de disseminação da doença

O diretor do Programa de Aids das Nações Unidas (Unaids), Peter Piot, começou sua carreira enfrentando o mais letal vírus do planeta, o ebola. Há anos, entretanto, ele se dedica ao combate à Aids e garante que a luta contra o HIV é muito mais dura, pois a doença é cercada de tabu, estigma e muita hipocrisia. Por isso, diz que, entre outras coisas, as estratégias de prevenção chegam apenas a uma parcela ínfima da população.

Em 2004 houve 5 milhões de novos casos de Aids, o maior número já registrado anualmente desde o início da epidemia. O mundo está perdendo a luta contra a doença?

PETER PIOT: Estamos assistindo a uma globalização da epidemia. Há até pouco tempo, a doença estava concentrada basicamente na África e no Caribe. Hoje ela está em expansão, sobretudo na Ásia. São cinco milhões na Índia. Mesmo que percentualmente isso represente pouco, é um número absoluto imenso de pessoas. Outro problema que enfrentamos é a falha na prevenção. Apenas 11% dos homens que fazem sexo com homens têm acesso à prevenção; somente 15% das profissionais do sexo e, em muitos lugares, menos de 5% das grávidas.

Por que é tão difícil?

PIOT: Não é que não saibamos o que funciona ou não funciona. A dificuldade está em chegar às pessoas. Problemas políticos, ideológicos e até teológicos interferem porque a prevenção lida com temas que muitas vezes são considerados tabus, como o sexo e o uso de drogas.

Na sua análise, quais são os fatores que mais contribuem para a disseminação da doença?

PIOT: Além da questão da globalização existem dois grandes propulsores da epidemia. Um deles é a pobreza. O outro é a violência sexual. E não estou falando de ataques nas ruas, estou falando da violência dentro do casamento.

A cada dia são registradas 14 mil novas infecções pelo HIV, 95% delas em países pobres. O senhor acha que os países ricos realmente se importam com isso?

PIOT: Acho que estão se importando cada vez mais. Dez anos atrás, quando o Unaids foi criado, não se importavam. Hoje, por exemplo, temos US$8 bilhões em fundos, 60% provenientes de doações de países ricos. Vimos no recente encontro do G8 um forte engajamento dos países desenvolvidos. Há uma mudança. E acho que um marco dessa mudança foi o discurso do Estado da União em que Bush anunciou US$15 milhões para a Aids. Isso mostra que o tema atingiu as autoridades dos países ricos, mesmo as mais conservadoras. A questão agora é saber se isso é sustentável e também mudar a regra do jogo no que diz respeito à produção de anti-retrovirais.

A quebra de patentes dos medicamentos anti-Aids está na pauta do dia no Brasil. O governo ainda analisa a possibilidade em relação ao Kaletra. A quebra de patentes seria a solução para o acesso aos medicamentos nos países pobres?

PIOT: O Brasil deve fazer o que for melhor para o país. Mas, em termos gerais, em breve teremos muito mais pessoas em tratamento e hoje não existe capacidade para atender a essa demanda, mesmo nos laboratórios privados. Então vamos ter que aumentar a produção. Faz mais sentido, claro, que isso seja feito nos países em desenvolvimento. Mas estamos diante de um grande dilema. Precisamos das drogas e a um preço baixo. Por outro lado, pela própria natureza da doença, dependemos de inovação. Precisamos desesperadamente de novas drogas em razão da resistência. Se quebrarmos todas as patentes acho que não teríamos novos anti-retrovirais no futuro. Quem investiria neles? Então, não podemos matar a galinha dos ovos de ouro.

E qual seria a solução?

PIOT: A questão é quem deve pagar? Me parece que são os governos e os consumidores dos países ricos. Temos que buscar esse tipo de acordo global.

É possível que a epidemia asiática alcance as mesmas proporções da africana? O que aconteceria?

PIOT: Acho que não vai chegar às mesmas proporções. O problema é que, como disse, mesmo pequenas proporções representam um grande número de pessoas infectadas. Só que a Ásia tem mais recursos e capacidade de ação. Mas é preciso, claro, reconhecer o problema, ter vontade política e deixar de lado a hipocrisia.

O senhor combateu a primeira epidemia de ebola in loco, na África. Há alguns anos vêm lutando contra a Aids. O que é pior?

PIOT: A Aids com certeza é pior. No caso do ebola, a pessoa adoece em uma semana e morre em duas. É mais arriscado para o profissional de saúde. E, claro, é visualmente mais impressionante. Mas por isso mesmo é mais fácil de isolar e debelar. A Aids não, é uma epidemia silenciosa, em que o indivíduo pode levar dez anos aparentemente saudável e, ao mesmo tempo, contaminando pessoas sem saber.