Título: Imagem desconstruída
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 26/10/2004, O país, p. 4

O nível de tensão e agressividade das campanhas eleitorais nunca esteve tão alto quanto neste ano, talvez não tanto em termos de violência explícita, mas de violência política, com o uso indiscriminado da máquina pública em todos os níveis e baixarias eleitorais dos mais diversos calibres. Inclusive o uso da religião como arma eleitoral, como fez o grupo do ex-governador Garotinho no Estado do Rio de Janeiro. Síntese dessa situação de ofensas generalizadas, a campanha em Goiânia provoca nas duas partes as mesmas queixas. O presidente do PT, José Genoino, denunciou ontem ¿violências¿ que estariam sendo cometidas contra o atual prefeito Pedro Wilson, que tenta a reeleição.

Já o candidato do PMDB à Prefeitura de Goiânia, Íris Rezende, à frente cerca 20 pontos do adversário, diz que foi vítima de atentados de toda sorte, desde panfletos apócrifos a boatos e agressões. Político representante das velhas oligarquias, Íris já foi tudo na vida: vereador, prefeito, senador, governador, ministro. E também já perdeu outras tantas eleições. Mesmo assim, diz que nunca viu ¿nada parecido¿ com o que o PT anda fazendo por lá.

O presidente do PT, José Genoino, soltou os cachorros ontem em entrevista ao site do partido, enfatizando o que já denunciara em nota oficial no fim de semana: o PT está sendo perseguido com ¿ataques baixos¿ por todo o país, com a formação de um ¿clima anti-petista¿ que favorece ¿posturas preconceituosas¿ contra o partido, usando ¿informações truncadas, exagerando fatos menores¿.

Genoino atribui esse clima contra o PT a dois agentes políticos: Garotinho, ¿da sua maneira atabalhoada¿, e o PSDB, ¿da sua maneira sofisticada e arrogante¿. O que Genoino não diz é que a política agressiva do PT é que gerou esse clima de exacerbação, devido tanto ao apetite petista, que se colocou muitas vezes desnecessariamente contra seus próprios aliados, apenas pela reafirmação do poder, quanto pelo uso da máquina pública, a começar pelo próprio presidente da República.

É a primeira vez em nossa História que um presidente é multado por ter usado suas prerrogativas para fazer campanha política a favor de um candidato. Inaugurações de obras, algumas até inacabadas, em municípios em que candidatos do PT disputam o segundo turno, apoio maciço de ministros e outras autoridades nas campanhas municipais, demonstrações de força visando a intimidar os concorrentes, ameaças, veladas ou diretas, de corte da ajuda federal em caso de vitória do adversário, tudo isso foi se acumulando para formar um ambiente hostil, favorável a radicalizações.

O presidente do PT argumentou recentemente que os governadores estavam entrando na campanha com muita força por todo o país, e é injusto que apenas o presidente da República não possa fazê-lo. Tem razão Genoino, e a questão está em separar as ações do Estado das ações políticas, o que, com mais freqüência do que seria o razoável, muitas vezes não foi feito nessa eleição.

A candidata Marta Suplicy , que reiterou ontem, desta vez sem choro, que é vítima de preconceitos, acusa o governador Geraldo Alckmin de ser o verdadeiro responsável pela situação de liderança em que está o candidato do PSDB, José Serra. Antes de ser uma acusação, é um elogio político ao governador tucano, e um reconhecimento de que, pelo menos em São Paulo, seu apoio tem mais peso do que o do presidente Lula, que atravessou a linha da legalidade na tentativa de ajudar a vitória da prefeita petista.

Mesmo que governadores como Alckmin tenham atuado nas campanhas a favor de seus candidatos ¿ e nenhum ato ilegal foi atribuído a ele ¿ nada se compara com a ação do grupo do ex-governador Garotinho nas eleições do Rio de Janeiro. Certo de que sairia das urnas fortalecido para se tornar uma opção de candidato à Presidência da República, Garotinho não soube enfrentar derrotas em municípios estratégicos, como em São Gonçalo já no primeiro turno, e a possibilidade de derrota para o PT em Nova Iguaçu e Niterói.

Acima de tudo, o espectro da derrota simbólica em Campos, sua origem política, parece que teve o dom de desequilibrar o clã Garotinho, que passou a não medir gestos e atitudes para tentar evitar uma derrocada eleitoral que, a essa altura, é irreversível.

Mesmo que vença em Campos, ou consiga reverter a situação em Nova Iguaçu, os métodos utilizados sem pudor já comprometem as eventuais vitórias.

Contra Lindberg Farias, o candidato do PT em Nova Iguaçu, foram usados os mais baixos recursos, até mesmo a religião. Se aproveitar da boa-fé popular para fazer campanha política, usando em vão o nome de Cristo, é uma heresia. Transferir o governo para Campos, às vésperas do segundo turno, um achincalhe. Distribuir material escolar no fim do ano letivo, um acinte. Prometer casas a R$ 1 para eleitores se cadastrarem, um retrocesso político.

A imagem nacional do político Garotinho, que nas últimas eleições presidenciais ainda pareceu a cerca de 15 milhões de incautos uma boa alternativa, já se desfocara com o fracasso da política de segurança pública do estado. Sai dessas eleições municipais desconstruída, reduzida de volta a seu tamanho original.