Título: UM GOLPE NA CRIMINALIDADE
Autor: Renan Calheiros
Fonte: O Globo, 29/07/2005, Opinião, p. 7

Indignação, perplexidade, desilusão. É impossível não reagir de outra forma diante da onda de denúncias de desvio de dinheiro público e corrupção. Investigar com rigor todas as suspeitas é essencial. Mas é essencial, também, reconhecer que o Congresso Nacional continua atento às suas responsabilidades. Prova disso foi a aprovação, no dia 6, do decreto que regulamenta o referendo sobre o desarmamento.

A consulta popular marcada para 23 de outubro vai entrar para a História. Além de ser o primeiro referendo a ser realizado no país desde a Constituição de 88, o debate acontecerá em torno de um tema controverso: a proibição da venda de armas e munição. Uma discussão que começou em 99, quando, à frente do Ministério da Justiça, tive a oportunidade de contribuir para a primeira proposta que impunha regras rigorosas de restrição ao uso e à venda de armamentos. Foi esse projeto que acabou dando origem ao Estatuto do Desarmamento, aprovado pelo Congresso em 2003. Tal código ¿ inédito no mundo ¿ significa, com certeza, um golpe na cultura armamentista. E o referendo de outubro, uma vitória digna de celebração não só por parte dos parlamentares, como eu, que defendem o desarmamento, mas de todas as entidades que lutam contra a violência, de todas as pessoas que já perderam amigos e familiares vítimas de armas de fogo, da sociedade, enfim, que sonha com um Brasil mais pacífico.

A discussão vai ser a mais ampla possível. Para isso, já foram formalizadas, na Justiça Eleitoral, duas frentes parlamentares, uma contra e uma a favor do desarmamento. O objetivo da Frente Brasil sem Armas é mostrar que o referendo de outubro pode mudar uma estatística cruel, que hoje aponta 108 vítimas de armas de fogo, a cada dia, no país. O povo brasileiro vai ter a oportunidade de dizer, nas urnas, se quer dar um basta nos chamados crimes imotivados, que acontecem por causa de uma briga de bar, de uma discussão de trânsito, de um acidente. Esse é o objetivo do Estatuto do Desarmamento. Para a criminalidade sistêmica, o narcotráfico, o remédio é outro. É preciso investir na área social, nas polícias, aprovar penas mais duras, reformar o sistema penitenciário e nossos códigos ultrapassados.

O sucesso da Campanha de Desarmamento, desencadeada a partir do Estatuto, foi um exemplo para o mundo. Em menos de um ano, mais de 380 mil armas saíram de circulação, entregues espontaneamente pela população. Só a Austrália conseguiu superar o Brasil em número de armas entregues voluntariamente pela população. Mas as 600 mil armas que saíram de circulação naquele país foram entregues a preços de mercado. No Brasil, o pagamento foi simbólico, entre 100 e 300 reais. O que pesou mesmo foi a consciência, cada vez maior, de que arma não protege. Mata.

E mata sem piedade, especialmente os nossos jovens. Os dados da Unesco são assustadores: um em cada três jovens mortos no país é vítima de arma de fogo. Entre 1979 e 2003, as armas de fogo mataram nada mais nada menos que 550 mil pessoas no Brasil. Mais gente, a cada ano, que em toda a Guerra do Golfo, ou todo o conflito entre Israel e Palestina.

Quanto menos armas, menos crimes. Mas, para os céticos, ficam os números, inquestionáveis, do Ministério da Saúde e do Centro de Estudos Brasileiros de Oxford, na Inglaterra: depois da Campanha de Desarmamento, o número de internações por ferimento a bala caiu 10,5% no Rio e 7% em São Paulo. O registro de homicídios diminuiu 14,8% na capital paulista e o de latrocínios, 25,9%. O referendo de outubro vai, sem dúvida alguma, empurrar estes números ladeira abaixo. E a cultura da violência ¿ esperamos ¿ vai mudar radicalmente. No lugar dela, esperamos que venham tempos de paz, sem as armas de fogo e suas lamentáveis conseqüências.

RENAN CALHEIROS, senador, é presidente da Frente Parlamentar Brasil sem Armas.