Título: SESSENTA ANOS DE TERROR NUCLEAR
Autor: Gilberto Scofield Jr.
Fonte: O Globo, 31/07/2005, O Mundo, p. 39

Destruídas por bombas, Hiroshima e Nagasaki hoje lideram luta contra essas armas

Shizuko Abe tinha 18 anos no dia 6 de agosto de 1945 e, como todos os jovens japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, ela havia abandonado os estudos para se dedicar ao esforço de guerra. Era um dia claro e quente de verão e às 8h, Shizuko e seus colegas iniciavam a derrubada de parte das casas de madeira do centro de Hiroshima para tentar criar um cordão de isolamento antiincêndio no caso de um bombardeio incendiário aéreo. Àquela altura, ninguém imaginava que Hiroshima seria o laboratório de outro tipo de bombardeio, muito mais devastador e letal, para o qual os abrigos antiincêndio foram inúteis.

Foi quando surgiu o clarão no céu, a 580 metros de altura. Às 8h15m, pela primeira vez na História, uma cidade era varrida do mapa por um novo tipo de arma: a bomba atômica de urânio enriquecido. Shizuko foi atingida pelo impacto da explosão no lado direito do rosto, braço e perna, imediatamente transformados numa grande ferida exposta, com pedaços de pele pendentes do corpo como farrapos de roupa. Ela foi arremessada a dezenas de metros e tudo o que lembra é o horror:

¿ De repente, a cidade ardia em chamas, minhas roupas se desintegraram e eu estava quase nua e sangrando. Pelas ruas e entre os prédios em ruínas, milhares de corpos carbonizados e gente gritando por socorro. Muitos corriam para o rio para tentar apagar o fogo de si mesmos e havia tantos corpos que eu mal conseguia ver a água. Até hoje sonho com essa imagem ¿ diz ela, aos 78 anos. ¿ Mas a gente não pode esquecer. E é por isso que me tornei uma ativista e estarei aqui no próximo sábado para lembrar ao mundo que as armas nucleares ainda são uma ameaça à Humanidade.

Japão tenta apagar passado belicista

Shizuko se refere à gigantesca cerimônia ¿ são esperadas 50 mil participantes ¿ que a prefeitura de Hiroshima vai realizar no próximo sábado, quando se completam 60 anos da bomba de Hiroshima, que matou 140 mil pessoas. Outra cerimônia igualmente grande ocorrerá no dia 9, data em que Nagasaki foi arrasada por uma bomba atômica de plutônio que resultou em 74 mil mortos. As cerimônias existem oficialmente desde a década de 50, mas este ano será diferente.

Num momento em que o Japão se une ao Brasil, à Alemanha, à Índia e a países africanos no esforço de reformar o Conselho de Segurança da ONU, as cerimônias em Hiroshima e Nagasaki ganham importância. Lá estarão presentes políticos japoneses liderados pelo primeiro-ministro Junichiro Koizumi, além de representantes de países e organizações pacifistas. Ninguém fala oficialmente sobre o tema, mas sabe-se que para os japoneses, passar uma imagem de nação pacífica, apesar do passado belicoso, é fundamental neste momento diplomático.

¿ O Japão precisa marcar espaço na Ásia, especialmente junto aos chineses, como um país que é a antítese dos agressivos imperialistas do século passado ¿ diz um diplomata americano em Pequim.

Não há espaço para meias-verdades, nem sobre os antigos inimigos e hoje aliados ¿ os EUA ¿ justamente o país que despejou as bombas sobre o Japão:

¿ A egocêntrica maneira do governo dos EUA de ver o mundo está atingindo extremos ¿ diz o prefeito de Hiroshima, Tadatoshi Akiba, autor da ¿Declaração de paz de Hiroshima¿. ¿ Ignorando a ONU e as leis internacionais, os EUA retomaram as pesquisas para fazer armas nucleares menores e mais facilmente manipuláveis. Em todos os lugares, a corrente de violência e retaliações não conhece fim: a abordagem de que as armas nuclearas trazem segurança é inútil e um símbolo deprimente dos nossos tempos.

¿ Milhares de pessoas morreram de forma pavorosa por causa da bomba e o mundo ainda está tentando conviver com essas armas ¿ faz coro o diretor do Departamento de Promoção da Paz Internacional de Hiroshima, Akira Tanigawa. ¿ A cidade quer ser um exemplo mundial de alerta.

Tanigawa se refere a um assunto que tem pouca repercussão no Ocidente, mas que não sai das manchetes asiáticas: a ameaça constante da Coréia do Norte de usar armas nucleares contra vizinhos, especialmente Japão e Coréia do Sul. Desde 2002 os EUA acusam o país de manter um programa de enriquecimento de urânio como base para a construção de armas nucleares, o que é negado por Pyongyang. Semana passada, Coréia do Norte, EUA, Japão, Coréia do Sul, China e Rússia tentaram negociar a troca de ajuda econômica aos falidos norte-coreanos pelo fim de pesquisas nucleares, mas um acordo está longe.

Durante o último encontro para revisão do tratado de não-proliferação de armas nucleares da ONU, em Nova York, em maio, foram os prefeitos Tadatoshi Akiba, de Hiroshima, e seu colega Iccho Itoh, de Nagasaki, que lideraram uma marcha de milhares de pessoas contra as armas nucleares. O encontro acabou sem um consenso sobre a melhor forma de livrar o mundo dessas armas, mas Hiroshima e Nagasaki não desistem de seus planos de um mundo livre do terror atômico.

¿ A missão de Hiroshima e Nagasaki é não deixar o mundo esquecer ¿ diz o ativista Yashinori Obayashi, do grupo Voluntários da Paz de Hiroshima, sobrevivente.

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