Título: `A EUROPA ESTÁ NUM PROCESSO DE REFLEXÃO¿
Autor: Vivian Oswald
Fonte: O Globo, 31/07/2005, O Mundo, p. 43

Presidente do Parlamento Europeu defende aproximação com AL e integração de muçulmanos

BRUXELAS. Presidente do Parlamento Europeu há 12 meses, o espanhol Josep Borrell quer que a Europa se volte mais para o Hemisfério Sul e diz que a América Latina deve ser uma prioridade. Esta semana segue numa viagem de cinco dias ao Brasil, onde deve ser recebido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e ao Chile, onde estará com o presidente Ricardo Lagos. Admitiu ainda conhecer pouco o Brasil ¿ apenas do Fórum Social de Porto Alegre, do qual já participou e onde fez amizade com o novo presidente do PT, Tarso Genro. Em entrevista ao GLOBO, afirma que um dos problemas mais graves enfrentados pela Europa hoje é sua relação com o mundo muçulmano.

Qual é o objetivo de sua viagem ao Brasil e ao Chile?JOSEP BORRELL: Desde que cheguei à presidência do Parlamento, me dei conta de que a Europa estava muito voltada para o leste e não tinha se voltado nem para o sul nem para oeste. Focava o leste para unificar-se e o noroeste por suas relações conflituosas com os Estados Unidos. Nem o Mediterrâneo nem o Atlântico Sul foram temas prioritários. O sul deve ser uma prioridade. Como europeu, espanhol e mediterrâneo, quero impulsionar esta aproximação.A Europa tem parcerias estratégicas com a China e a Índia e não tem com o Brasil, por exemplo. O acordo comercial entre o Mercosul e a União Européia não sai. Como melhorar esta relação?BORRELL: O que vejo é que todo mundo vai à Índia, à China. Acho que deve haver um equilíbrio. Acho que a UE deve se preocupar um pouco mais com isso. Quando firmamos acordos com alguns países ¿ Chile e México são bons exemplos ¿ os resultados foram muito positivos. As trocas comerciais com o Chile, por exemplo, aumentaram cerca de 25%. Estamos num impasse no acordo com o Mercosul, que, em minha opinião, teria muito mais do que um acordo comercial. Marca um pouco o equilíbrio das relações com os Estados Unidos e com a Europa. Podemos dizer que, frente ao grande mercado americano, a Europa é uma alternativa.Como o Parlamento pode aumentar o interesse da UE pela América Latina?BORRELL: O Parlamento é cada vez mais uma autoridade política na estrutura institucional européia. Se o Parlamento diz algo ou vota algo, a comissão não pode permanecer alheia. Mas para que entre em pauta, é preciso primeiro que o Parlamento se interesse. Precisamos conseguir que o Parlamento se interesse. Para muitos parlamentares, do Báltico ou do Cáucaso, por exemplo, a América Latina parece distante e diferente.O que fazer então para interessá-los?BORRELL: Orientar o trabalho das comissões. Intervir mais, por exemplo, nas negociações comerciais com o Mercosul. Pode dizer à comissão o que acha que pode ser feito nas negociações que, neste momento, estão patinando. Pascal Lamy tentou concluí-las e não conseguiu. E agora estão patinando provavelmente porque todos estão conscientes de que este acordo implicaria uma modificação substantiva na política agrícola européia. Não é fácil. Não é apenas um acordo com um terceiro país. Modifica parâmetros de uma grande política comum. Compreendo as dificuldades. O presidente do Parlamento Europeu pode demonstrar que este é um foco de atenção, que a negociação com o Mercosul é importante, que a estabilidade democrática da América Latina é tão importante para a Europa como na Turquia. O que acontecerá com a Europa depois que França e Holanda disseram não à Constituição européia?BORRELL: A Europa está num processo de reflexão sobre si mesma. Essa reflexão é imprescindível. O projeto europeu é um sonho de paz e cooperação entre países historicamente antagônicos. Era um projeto mobilizador. O sonho se tornou realidade. Ninguém imagina uma guerra entre nós outra vez. É um êxito extraordinário. Em 50 anos, os países mais antagônicos da História se tornaram os vizinhos mais cooperativos do mundo. Mas já não basta sonhar. A UE está maior. Cresceu muito mais em dimensão que em coesão. A própria dimensão do bloco mudou a natureza do projeto e deixou inviável seu funcionamento como era quando éramos menos numerosos. É preciso buscar outras razões para impulsionar o sonho outra vez.Que razões podem ser estas?BORRELL: Só podem ser duas, que é o que os europeus esperam da Europa e que não viram a Europa lhes dar: uma maior prosperidade econômica e maior segurança contra os novos riscos.A Europa está em crise?BORRELL: A Europa se fez através de sucessivas crises. Não devemos nos preocupar com a palavra crise. Sempre se saiu das crises. Mas antes se saía porque se percebia necessário. E agora?BORRELL: Agora os medos têm sido mais fortes do que as ilusões, do que o sonho. O medo do próprio crescimento da UE, da globalização. Os velhos sonhos são menos fortes que os novos temores. Mas a grande vantagem da UE hoje é que todos os problemas se resolvem debatendo.O ingresso da Turquia tem sido uma das preocupações dos cidadãos, assim como a relação com a comunidade muçulmana e o terrorismo. Como enfrentar essas questões?BORRELL: É evidente que um dos problemas mais graves que enfrenta a sociedade européia é a sua relação com o mundo muçulmano. É por isso que digo que se deve voltar para o sul também. O problema se agravou com a guerra do Iraque e com o conflito do Oriente Médio que não termina. A Europa está muito mais vulnerável às sacudidas e aos conflitos no mundo muçulmano que Estados Unidos. Sem dúvida. Somos uma presa, um alvo mais imediato para o terrorismo. Também pagamos um preço mais alto no que diz respeito aos custos do petróleo. O primeiro a se fazer é evitar o conflito de raiz étnica e religiosa entre as comunidades. E a resposta dada na Espanha, na Holanda e no Reino Unido tem sido muito positiva porque não houve um enfrentamento. É preciso aumentar o diálogo. A Europa não só se pacificou entre Estados como também conseguiu criar uma sociedade com componentes multiétnicos, multiculturais e multirreligiosos que, apesar de tudo, têm uma relação de convivência muito importante. É preciso investir energias para que isso siga assim.Como o Parlamento Europeu pode criar políticas para integrar melhor as comunidades muçulmanas, aumentar o diálogo, discutir segurança?BORRELL: As instituições européias não podem tudo. Muitos problemas só têm solução pelas políticas nacionais porque não se quis fazer uma política comunitária. Mas há problemas que só terão solução se resolvidos no nível comunitário. Nem o maior país nem o mais forte são capazes de garantir sua segurança sozinhos. A Europa agora estará diante de um dilema do equilíbrio entre segurança e liberdade. E o Parlamento terá um papel fundamental nesta discussão. De quanta liberdade teremos que abrir mão para garantir a segurança? As liberdades civis são as bases da sociedade. Em matéria de direito de asilo há uma discrepância muito grande entre o Parlamento e o conselho, que provavelmente vai acabar nos tribunais. Em matéria de confidencialidade de conversas telefônicas e das comunicações pela internet, o Parlamento exigirá garantias de que a vontade de controle não diminua a liberdade das pessoas abaixo de certos níveis.E o que acontece agora com a Constituição européia?BORRELL: Neste momento estamos pensando.É possível fazer novos referendos na França e na Holanda?BORRELL: Não creio que franceses e holandeses vão votar o mesmo texto. Não serão feitos novos referendos na França e na Holanda. Até porque haverá eleições. Nos próximos anos isso está fora de questão. Também não há a menor possibilidade de se votar um novo texto.Isso prejudica o Parlamento, que ganharia mais poderes com a Constituição?BORRELL: O tratado constitucional dava mais poderes ao Parlamento Europeu, mas temos muitos poderes que ainda nem usamos. A Europa é um exemplo de integração regional que pode ter muito interesse para a América Latina.A América Latina ainda está muito longe de uma integração como a européia...BORRELL: Mas pode ficar mais próxima. Quero reforçar a comunicação entre os parlamentos dos dois lados do Atlântico. Neste momento, presido o Parlamento Euro-mediterrâneo, criado para reforçar o diálogo norte-sul no âmbito do Mediterrâneo. Algo parecido tem que ser feito com a América Latina. Todos os representantes destes países quando passam por aqui dizem: se fossemos capazes de fazer uma integração econômica de escala regional como vocês, unir as nossas potencialidades, seríamos uma grande potência.Mas a estes países ainda falta uma série de requisitos, entre eles dinheiro...BORRELL: Não foi dinheiro. A Europa nasceu da sua amarga experiência. Chegou à beira do suicídio. Quase conseguiu se suicidar na Segunda Guerra Mundial. Quase conseguiu se suicidar. Tentou várias vezes e esteve a ponto de conseguir.