Título: Coerência
Autor:
Fonte: O Globo, 30/07/2005, Opinião, p. 6

É evidentemente causa de grande sofrimento para uma mulher grávida descobrir que o feto que está gestando é anencefálico (sem cérebro), sem consciência nem qualquer possibilidade de sobreviver por algum tempo razoável depois do nascimento, muito menos de levar uma vida normal.

Sofrimento maior, no entanto, é obrigá-la a levar a gestação a termo, suportando longos meses de uma gravidez que está inexoravelmente destinada a um fim trágico.

O aborto é permitido pelo Código Penal quando fica determinado pelos médicos que se trata da única forma de salvar a vida da gestante; ou então quando a gravidez é resultado de estupro. Neste último caso, registre-se, não se faz menção das condições de saúde da mãe ou do feto, podendo este ter toda a possibilidade de se tornar uma criança saudável. Isto porque, é claro, não se considerou justo ou humano obrigar a mulher a dar à luz o filho cujo pai terá sido o estuprador. O que já é suficiente para justificar a conclusão de que, se a lei não prevê um terceiro caso - a anencefalia - é por simples e óbvia omissão.

Os oponentes do aborto, nessas circunstâncias, argumentam com tanta veemência que se pode criar até a impressão de que abortar é obrigatório. Mas é evidente que a mulher que, por motivos religiosos ou de qualquer outra índole optar por ter o filho (caso não haja o aborto espontâneo que a natureza com bastante freqüência providencia nesses casos), tem todo o direito de fazê-lo. O que não faz sentido é obrigá-la a cumprir a provação de uma gravidez que não pode chegar a bom termo.

Como carece também de lógica sustentar que legalizar o aborto de fetos anencefálicos é abrir uma porta para que se generalize a permissão. Não foi o que aconteceu com a autorização nas duas situações já previstas em lei, e não há razão para imaginar que será assim nesse caso. A discussão sobre o direito ou não da mulher de abortar, em qualquer caso, é uma questão de grande importância, mas claramente distinta.