Título: A ECONOMIA VULNERÁVEL DE LULA
Autor: Ilan Goldfajn
Fonte: O Globo, 02/08/2005, Opinião, p. 7

Oex-presidente americano Harry Truman dizia que se não houver forma de convencê-los, confunda-os. O presidente Lula afirmou que a economia brasileira é muito vulnerável e não se pode ¿brincar¿, porque um retrocesso poderia implicar anos de recuperação. Dado que este parece ter sido o sinal político e o argumento econômico para justificar o cheiro de orégano que paira no ar, sinto-me instigado a analisar as vulnerabilidades da economia brasileira.

Em primeiro lugar, é bom esclarecer que, ao contrário do que vem sendo dito, as denúncias de corrupção não são ruins para a economia. É verdade que quando se revelam denúncias graves que atingem o âmago do governo, investidores ficam momentaneamente temerosos de investir seus recursos, com receio do que lhes espera no futuro próximo. Mas deveria ser evidente que é desejável para o bom funcionamento da economia um setor público que escolha seus fornecedores, seus gastos, enfim, suas prioridades, com base em interesses mais amplos que o resultante da corrupção. Assim como é desejável um setor privado que gaste seu tempo e recursos na melhora do seu negócio, em vez de em como corromper o governo e obter vantagens.

Em segundo lugar, foi curioso o momento do comentário do presidente. Não que faltem dificuldades na economia. Mas se há algo que o governo Lula pode se orgulhar foi de ter contribuído para diminuir sensivelmente as vulnerabilidades da economia. Tomemos o setor externo. Tanto as exportações quanto o saldo comercial têm quebrado recordes positivos, o que tem gerado excedente para acumular reservas e/ou pagar a dívida. De fato, a queda da dívida externa líquida nos últimos anos aumentou nossa credibilidade e diminuiu o seu custo (por ter retirado de facto o que restava de ameaçadora da bandeira de calote externo). Hoje, o relevante é a dívida interna, aquela que devemos para nós mesmos. Neste quesito houve avanços consideráveis, como a quase eliminação da dívida indexada ao dólar, o que torna a dívida interna mais previsível.

Mas, instigado pelo presidente, concentro-me aqui numa nova vulnerabilidade em potencial, que tem merecido pouca atenção do público: o endividamento das famílias. Os dados do Banco Central indicam que, apenas nos últimos dois anos, o crédito dos bancos às pessoas físicas cresceu em torno de 50%. A maior parte deste crédito tem se dirigido ao consumo de bens, já que o crédito habitacional tem decepcionado. Apenas uma parte deste crescimento vem da introdução da modalidade de crédito consignado; houve crescimento considerável do tradicional crédito pessoal, do crédito para aquisição de veículos e também do crédito via cartão. Em compensação, o crédito para as empresas, seja na indústria ou no comércio, tem tido crescimento modesto ou nulo, como proporção do PIB.

Mas este crescimento não é natural para uma economia cuja base de crédito é minúscula? Não é desejável que o crédito aumente na economia, reduzindo as restrições dos indivíduos? A resposta é sim, para ambas as perguntas, mas desde que o crescimento seja saudável. O risco é o reconhecimento futuro da incapacidade de estes empréstimos serem pagos, um aumento da inadimplência, uma queda repentina do consumo e do nível de atividade (sem contar o possível impacto sobre credores desavisados).

O crescimento do endividamento das famílias ainda é muito recente para um diagnóstico claro. Mas há alguns sinais de crescimento menos saudável que merecem nossa atenção: (i) o acelerado aumento do endividamento privado tem ocorrido sem crescimento nítido da renda real, que tem permanecido relativamente estável num patamar inferior ao observado em 2002; (ii) ao contrário do ocorrido no passado, o crédito tem tido forte crescimento mesmo em momentos de alta da taxa de juros para pessoas físicas; (iii) a inadimplência das pessoas tem se mostrado sensível ao estado da economia; cresceu de 12% para 13% quando a economia se desacelerou no começo deste ano, e (iv) o crescimento da economia a partir de 2003 tem sido favorecido pelos setores mais sensíveis a crédito (a produção de bens duráveis tem crescido a taxas muito maiores que a de bens semi e não duráveis, que dependem mais da venda à vista).

Há vulnerabilidades velhas e novas. As velhas vão bem, obrigado. Há novas que merecem nossa atenção. Mas nada que justifique um acordão político que possa desembocar na impunidade.

ILAN GOLDFAJN é ex-diretor do Banco Central.