Título: PACIENTE NÃO É CONSUMIDOR
Autor: Antonio Ferreira Couto Filho
Fonte: O Globo, 02/08/2005, Opinião, p. 7

Depois de quase 20 anos, passamos da hora de rever alguns pontos da Constituição, principalmente no setor da saúde, no qual o Brasil ocupa hoje o 124º lugar no ranking de qualidade da Organização Mundial da Saúde. A Lei de Proteção e Defesa do Consumidor, por ela gerada, embora tenha sido uma iniciativa louvável para proteger o cidadão contra o poder econômico, é um equívoco quando utilizada na relação médico-paciente.

Embora o Código de Defesa do Consumidor (CDC) tenha preenchido uma lacuna nas relações de consumo, não considerou que no campo dos prestadores de serviços profissionais liberais ambas as partes envolvidas devem ser alvo de proteção e defesa das garantias fundamentais previstas na dignidade da pessoa humana, conforme estabelece a própria Constituição.

Os rigores na busca de proteção e defesa para os pacientes passaram a ser usados indiscriminadamente contra o médico. Inversão do ônus da prova, concessão de gratuidade da Justiça, pedidos de valores exorbitantes a título de indenização por danos morais, entre outras questões, fomentam demandas judiciais ajuizadas contra os médicos em todo o país. O que pouco se divulga, no entanto, é que, segundo dados estatísticos apresentados pelo magistrado Miguel Kfouri Neto na obra ¿Culpa médica e ônus da prova¿, 80% das ações promovidas contra médicos são julgados improcedentes. Mesmo ganhando a grande maioria das causas, no entanto, os prejuízos que os médicos sofrem em sua carreira são incalculáveis. Copiou-se o modelo americano, gerando a ¿indústria do dano¿.

Mas há luz no fim do túnel. Há quase dois anos, os advogados passaram a contar a seu favor com uma decisão emanada do Superior Tribunal de Justiça (STJ), na qual o relator, ministro César Asfor Rocha, declara que a relação advogado-cliente não está subordinada ao CDC, não se tratando no caso de relação de consumo.

Fica fácil entender que a relação médico-paciente continua subordinada ao CDC muito mais por inércia do segmento do que por fundamentos técnico-jurídicos. A classe médica precisa se mobilizar para exigir a exclusão dessa subordinação injusta, uma vez que os mesmos argumentos utilizados para os advogados valem para os médicos.

Um Código Nacional de Saúde seria a oportunidade de resgatar a imensa lacuna de leis civis ocorrida entre 1917 e 2002, propiciando a fuga dessa legislação defensiva em seara consumista para um ordenamento baseado na ética, em total respeito à dignidade das pessoas que compõem a relação médico-paciente. Há tempos alertamos para essa necessidade, tendo em vista a inadequação de se aplicar o CDC para tal relação. É preciso uma regulamentação, mas não sob os preceitos das relações de consumo. Nossos médicos, cerca de 250 mil em todo o país, merecem respeito e precisam de paz para o digno exercício da profissão, o que na realidade visa da forma mais absoluta à saúde do paciente.

ANTÔNIO FERREIRA COUTO FILHO é presidente da Comissão de Biodireito do Instituto de Advogados Brasileiros.