Título: CONSTITUINTE PARA A REFORMA POLÍTICA
Autor: SÉRGIO BESSERMAN VIANNA
Fonte: O Globo, 03/08/2005, Opinião, p. 7

Àmedida que a crise política avança, sua essência vai se tornando mais clara, assim como as conseqüências das várias formas que o processo político pode tomar para superá-la.

Apesar da cortina de fumaça que tenta apresentar a crise atual apenas como um processo de investigação para apuração de alguns ilícitos eleitorais, está ficando evidente que a crise é muito mais ampla e profunda. É mais ampla em decorrência da extensão, da articulação e dos objetivos do conjunto de ilegalidades cometidas. E é mais profunda porque passa pela superação de um ciclo histórico maior, começa a revelar traços de uma nova agenda para a sociedade brasileira e envolve escolhas que podem ter importantes desdobramentos para a definição de qual tipo de civilização seremos nas próximas décadas.

Muito mais do que respostas, é a hora das boas perguntas. Um psicanalista francês, André Green, observou certa vez que ¿O mal da questão é a resposta.¿ Nesse momento de forte e generalizado repúdio à violação de tantas leis, talvez fosse bom nos perguntarmos, com muita preocupação, até onde a eficácia do sistema jurídico e a efetividade da adesão social ao sistema legal são condições para o desenvolvimento econômico e social a longo prazo.

Existe literatura nas ciências sociais sobre o papel desagregador que a desmoralização pública de algum aspecto basal da legalidade jurídica tem sobre o conjunto do sistema. Nessas condições, qual será o impacto histórico sobre o processo de construção democrática e sobre o desenvolvimento econômico e social da desmoralização pública e completa do arcabouço através do qual a representação política é eleita e exerce suas funções?

Precisamos investigar para punir culpados, desmontar quadrilhas e redes criminosas, mas a esta altura apenas a investigação dos ilícitos ¿ mesmo que profunda ¿ e as punições ¿ mesmo que numerosas e atingindo a quem quer que seja ¿ serão suficientes para dar vazão aos sentimentos que vão se consolidando na sociedade ao passo em que ela toma conhecimento dos fatos da crise?

Por essa razão a reforma política é necessária, embora não seja suficiente. A discussão sobre a reforma política que a crise suscitou está mal colocada. A questão não é reformar o sistema político sob a suposição de que resultará, inevitavelmente, em uma melhor qualidade da representação. Isso é impossível de assegurar, ou não estaríamos em uma democracia. Melhor do ponto de vista de quem? A incerteza do resultado eleitoral é uma premissa democrática.

A reforma política é indispensável em primeiro lugar para restaurar na sociedade o sentimento de legitimidade da representação política. Por essa razão, mais importante do que analisar os resultados das reformas políticas dos vários países que passaram por crises sistêmicas na última década e meia é registrar o fato de que todos eles tiveram de fazer uma reforma abrangente.

Em segundo lugar, a reforma é necessária para dar mais racionalidade e eficiência ao funcionamento do sistema político, na medida que, na Constituição de 88, o jeitinho brasileiro ao misturar de forma atabalhoada parlamentarismo e presidencialismo produziu uma feijoada de camarão ou um vatapá de lingüiça. A representação parlamentar só tem os bônus, sem os ônus, do exercício do poder na formação das maiorias de governo.

E, finalmente, porém fundamental, a reforma é uma das ferramentas para reduzir o peso do dinheiro no resultado das eleições. Não é aceitável que os valores envolvidos na desgraça política do primeiro-ministro da Alemanha, o terceiro maior PIB do mundo, sejam equivalentes a uma bem pequena fração das somas mencionadas nos escândalos brasileiros.

O mercado de poder e o mercado de negócios têm, em qualquer sociedade, inevitáveis intercessões. No Brasil, uma cultura historicamente patrimonialista encontrou, na atual formatação do sistema político, facilidades para confundir os dois mercados em excesso. Só não vê quem não quer que o dinheiro pesa excessivamente no resultado eleitoral em todos os níveis, abrindo caminho para perigosas aventuras antidemocráticas como as crises têm revelado.

A questão não é fazer ou não fazer a reforma política. A questão é como fazê-la para atingir seus objetivos. A opção mais sólida a ser construída é a Assembléia Nacional Constituinte restrita, porém soberana, para a reforma do sistema político, objetivando torná-lo mais eficiente, transparente, reduzir a influência do dinheiro no processo eleitoral e fortalecer as esperanças da nação no funcionamento da democracia.

Não é, nem pode ser, totalmente seguro que a Constituinte dará as respostas certas. Mas isso é menos importante do que o fato que ela simboliza, em si, as perguntas certas.

SÉRGIO BESSERMAN VIANNA, diretor do Instituto Pereira Passos, é ex-presidente do IBGE.

N. da R.: Roberto daMatta volta a escrever neste espaço em setembro.

Precisamos investigar e punir, mas a esta altura isso já não é suficiente