Título: Pedofilia e silêncio
Autor: JOSÉ RENATO AVZARADEL
Fonte: O Globo, 04/08/2005, Opinião, p. 7

Apedofilia é um fenômeno muito mais amplo e tolerado do que se deseja acreditar. Tomamos conhecimento, através de relatos e pela imprensa, de inúmeros casos que envolvem padres, pais, tios, avós, prostituição infantil e turismo sexual. O interesse e as visitas constantes aos sites de pedofilia deixam claro que o assunto não pode mais ser ignorado.

Como na maioria dos casos as situações não se tornam públicas, os reflexos psicológicos da pedofilia são percebidos nos consultórios anos depois. Chama a atenção, no entanto, não apenas o número de pedófilos, mas também o acobertamento e a conivência das instituições e das famílias, o que faz aumentar significativamente o número de pessoas que sabem, participam, propiciam e pactuam com a pedofilia, que se define como sendo práticas sexuais envolvendo crianças menores de 14 anos.

A psicanálise, sem dúvida, pode contribuir para o entendimento do problema a partir de três vértices: as conseqüências traumáticas sobre as crianças em seu desenvolvimento emocional; o funcionamento da mente do pedófilo; e a questão ética.

No primeiro vértice, a criança é submetida a uma sobrecarga de violência sexualizada, para a qual não está em condições de lidar nem física e nem emocionalmente. Esta sobrecarga, não podendo ser elaborada, gera uma quantidade de afetos que não podem adquirir representação mental. Estes sentimentos irão aparecer de forma confusa, através de inibições, agressividade, frigidez e impotência. A capacidade de pensar e a de amar ficam seriamente comprometidas. Não há como aferir, a priori, as conseqüências. Mas quando estamos com alguém no consultório que passou por esta experiência, sabemos que teremos pela frente um trabalho delicado e por muitos anos de reconstrução mental. A criança, quando nos procurara na fase adulta, aprendeu que não pode confiar nas pessoas que deveriam cuidar dela. Portanto, levará um bom tempo até que a confiança ¿ condição essencial para que um tratamento dê certo ¿ se estabeleça. O trauma ¿ e como ele interfere no desenvolvimento da mente de uma pessoa, e como podemos realmente tratar suas conseqüências ¿ continua sendo um dos temas que mais preocupam psicanalistas e estudiosos na atualidade. Tanto que o assunto foi discutido no Congresso Internacional de Psicanálise este ano, no Rio de Janeiro, com a presença de 2.500 psicanalistas de vários países do mundo.

Mas o que faz com que tantos adultos sejam pedófilos e outros tantos coniventes? Freud demonstrou que as fantasias sexuais infantis são um fato universal, e que com o desenvolvimento sadio elas são elaboradas e a seguir reprimidas. Os pedófilos tentam reviver suas fantasias não resolvidas. As crianças, que são abusadas sexualmente, funcionam como sendo a criança que está dentro de cada um. Neste jogo, ele realiza a sua fantasia, cuja frustração na infância gerou ódio e não amadurecimento. É uma sexualidade guiada pelo ódio.

Deparamo-nos então com um ponto crucial. Não há qualquer consideração para com a criança que é usada como um objeto sexual. Ela não é percebida como sendo uma pessoa, e há uma ausência absoluta de amor. Esta é a questão ética. A psicanálise se desenvolveu nos últimos 50 anos, modificando-se de forma tal, que tem possibilitado uma maior fundamentação da ética a partir da essência emocional do ser humano. A primeira grande mudança foi que o foco deixou de ser na sexualidade e passou a ser no amor e como ele se constitui dentro de cada indivíduo. Como conseqüência, a ênfase no estudo da consideração e responsabilidade para com o outro. Esta dimensão mais ampla permitiu que a saúde mental fosse examinada sob a ótica da capacidade de amar. O amor ao próximo pode ser pensado psicanaliticamente e contribuir para o estabelecimento de uma ética.

As vantagens e lucros com o comércio sexual, sites, pornografia infantil e prostituição não me parecem ser suficientes para justificar a conivência. O problema tem raízes mentais mais profundas. No entanto, o que mais intriga na postura de parte da Igreja Católica americana não é a permissão da perversão, mas sim a negação do principal pilar da igreja, ou seja, o amor ao próximo. O que mais preocupa em relação à pedofilia é a sua extensão e a dificuldade de romper o silêncio.

JOSÉ RENATO AVZARADEL é psicanalista.