Título: Explicitar a ética
Autor: Rachel Bertol
Fonte: O Globo, 06/08/2005, Prosa & Verso, p. 1

Tendo a atual crise política sido originada por denúncias de corrupção, muitos afirmam que se trata, no fundo, de uma crise moral. Alguns fazem generalizações tais como "todos os políticos são ladrões". Numa ocasião como esta, não faltam oportunistas dispostos a pescar em águas turvas. Dado que meu tema no seminário "O silêncio dos intelectuais" é o relativismo, falarei aqui daqueles que, diagnosticando a crise moral como resultado da generalização do relativismo cultural e ético, propõem, como terapia, o regresso à obediência a preceitos religiosos, de validade pretensamente absoluta.

Ocorre que as religiões são inúmeras e seus preceitos diversos e, às vezes, incompatíveis: basta lembrar que os muçulmanos, ao contrário dos cristãos, praticam a poligamia; os cristãos, ao contrário dos muçulmanos e judeus, admitem comer carne de porco; e os católicos, ao contrário dos protestantes, praticam o culto aos santos. Que preceitos escolher? Quem os escolheria? Quem os faria cumprir?

Como a maioria do povo brasileiro se declara católica, suponho que haveria quem se apoiasse nisso para propor a absolutização dos preceitos católicos. Por outro lado, os evangélicos são politicamente mais agressivos e - mesmo quando diretamente envolvidos na corrupção que, não obstante, denunciam - mais aptos a explorar as decepções políticas. De toda maneira, a vitória, nesse particular, de uma religião significaria uma brutal opressão para as demais. Além disso, é evidente que a imposição dos preceitos da religião vitoriosa não poderia ser feita sem violência, mesmo em relação aos próprios adeptos dessa religião. Assim, o catolicismo condena o aborto, mas a maioria das mulheres que o pratica é composta de católicas. Como impedi-las de fazê-lo senão pela violência? Dado que semelhante violência teria que ser institucional, o Estado seria posto a serviço da religião.

Viveríamos então sob a pior, pois a mais totalitária, das ditaduras, que é uma teocracia. Por que a pior? Em primeiro lugar porque, pretendendo representar o próprio Deus na terra, a teocracia tenta controlar totalmente os seus cidadãos - melhor dizendo, os seus súditos -, buscando fiscalizar até, em última análise, o que fazem e dizem em suas casas, nos seus quartos, leitos, pensamentos, fantasias. Seria a volta do Santo Ofício, da Inquisição.

Outra razão pela qual a teocracia seria a pior das ditaduras é que, em conseqüência dessa mesma pretensão de representar a divindade, ela não toleraria qualquer controle externo. Ora, como todo totalitarismo, a teocracia corrompe totalmente. É sem dúvida por isso que a época histórica de domínio absoluto do cristianismo, a Idade Média, não foi apenas uma das mais violentas, mas talvez a mais corrupta de que se tem notícia: e isso no seu próprio coração, isto é, no Vaticano. Assim, o "remédio" religioso seria muito pior do que a "doença" que pretende curar.

O relativismo moderno, caluniado pelos religiosos, é, na verdade, ao menos em parte, resultado do reconhecimento dos fatos que acabo de apontar, isto é, do reconhecimento dos riscos representados por qualquer tentativa de regressão à heteronomia ética. Sem retroceder para aquém das exigências de tolerância e pluralidade expressas pelo relativismo, cabe ao intelectual moderno, ciente, ao contrário, do imperativo da adoção de uma ética inteiramente autônoma e puramente racional, tentar explicitá-la para o nosso tempo.

ANTONIO CICERO é poeta