Título: Uma nova inconfidência mineira até chegar no PT
Autor: Chico Otavio
Fonte: O Globo, 07/08/2005, O País, p. 13

Valério manteve nas sombras suas relações com políticos e empresários de Minas antes dos negócios com Delúbio

BELO HORIZONTE. Um dos personagens mais fascinantes de ¿Sagarana¿, obra-prima de Guimarães Rosa de 1946, é o interiorano Lalino Salãthiel. Simpático, enganador e esperto, ele é a figura central do conto ¿A volta do marido pródigo¿. Para reconquistar a mulher, que o abandonara em troca de uma aventura no Rio, Lalino dobra primeiro o chefe político local, major Anacleto, valendo-se das mais variadas estripulias políticas para elegê-lo. Espalha intrigas, agrada a figuras influentes e engana adversários, chegando a tomar um porre com eles para comprometê-los. Quase 60 anos depois, Lalino volta à cena, desta vez encarnado na pele de um mineiro de carne e osso. Simpático, enganador e esperto, Marcos Valério de Souza é a versão moderna do anti-herói de Rosa. Em Minas, é difícil achar algum político, inimigo ou ex-aliado, que negue as suas qualidades, embora sua esperteza se aproxime dos prontuários da polícia e não das páginas da literatura.

¿ Valério era o sonho de consumo de qualquer político. Tinha uma solução para tudo, principalmente para as dificuldades financeiras de campanha ¿ diz um dos ex-aliados, que não esconde o sorriso no rosto ao falar dos tempos em que convivia com o empresário.

No início do conto, a aparição de Lalino causa sensação. Cabelos negros, com as ondas refulgindo de brilhantina, ele escorrega de um caminhão bamboleando, sorridente. ¿Blusa cáqui, com bolsinhos, lenço vermelho no pescoço, chapelão, polainas, e, no peito, um distintivo, não se sabe bem de quê¿. Ao contrário do personagem, Valério não usava chapelão nem tem cabelos pretos e ondulados, mas sua figura causou mais ou menos a mesma impressão ao se aproximar do então empresário Clésio Andrade, em 1996, enquanto este dava sua tradicional corrida à beira da Lagoa da Pampulha.

Batismo político pela publicidade

Clésio, apontado por nove entre dez políticos mineiros como responsável por introduzir Valério no cenário eleitoral, diz que não conhecia até então aquele tipo careca, de 1,70 metro:

¿- Ele disse que era assessor do Banco Central e tinha um bom negócio para propor. Marcamos reunião para o dia seguinte.

O encontro, aparentemente apenas mais uma simples reunião de negócios para Clésio, empresário do setor de transportes que já flertava com a política, entra agora para a história política do país como o batismo de Valério no mundo político. O que seria um investimento ¿ comprar uma agência de publicidade falida e transformá-la em negócio saudável e lucrativo para passar adiante depois ¿ foi transformado em menos de uma década na mais poderosa máquina de produzir recursos para financiar projetos políticos.

Vice-governador de Minas e presidente da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), Clésio recorda-se que, para convencê-lo, Valério usou o nome dos dois outros sócios da SMP&B Publicidade, Cristiano Paz e Ramon Cardoso, porque, ao contrário dele, eram conhecidos no mercado. No encontro do dia seguinte, alegou que, após a morte de um funcionário, a empresa passara a ser mal administrada. Clésio disse que só aceitou entrar no negócio com o compromisso dos futuros sócios de que outra empresa seria criada, a SMP&B Comunicação, e que Ramon e Cristiano continuariam a gerir a antiga empresa. No ano seguinte, a fórmula foi repetida na compra da DNA Propaganda. Clésio manteve um diretor de confiança acompanhando a gestão da empresa.

¿- Entrei com 50%, mas Valério foi tão convincente que acabei cedendo 10% para ele, que se comprometeu a quitar a dívida com trabalho.

Aos 35 anos, Valério era um estranho na vida política mineira. O deputado Virgílio Guimarães (PT-MG), seu conterrâneo de Curvelo, responsável por apresentar o empresário às hostes petistas, disse que Valério era, no máximo, um freqüentador dos gabinetes da família Canabrava, que dominava a política local. Sua trajetória, antes da SMP&B, era ainda mais nebulosa. Sabe-se que ele trabalhou em bancos (ele diz que permaneceu 20 anos no Bemge), com razoável aptidão para finanças, e que se apresentava como assessor do Banco Central. Ele próprio, porém, nunca explicou que tipo de assessoria prestava ao BC.

Durante pelo menos dois anos, a carreira de Valério seguiu associada ao projeto político de Clésio. Ex-presidente do Sindicato das Empresas de Transportes Coletivos de Minas, desde os anos 80 ele mantinha estreitos contatos com políticos locais, sempre de olho na tramitação de projetos ligados aos interesses da categorias. Filiado ao PFL, foi suplente do senador Francelino Pereira e, ao ser eleito pela primeira vez presidente da CNT, em 1994, ampliou os seus horizontes políticos. Ele nega, mas amigos de Valério afirmam que ambos se conheceram antes mesmo do encontro da Lagoa da Pampulha.

Em agosto de 1998, a campanha do então governador Eduardo Azeredo à reeleição derrapava, ameaçada pelo ex-presidente Itamar Franco, quando Valério lançou a primeira grande cartada na vida política. Contraiu empréstimo de R$11,7 milhões no Banco Rural, destinados a alavancar a candidatura Azeredo, e ofereceu como garantia os contratos publicitários de suas agências junto ao governo mineiro. O dinheiro despejado não foi suficiente para vencer Itamar Franco e a derrota teria provocado o rompimento entre Valério e Clésio. Enquanto o primeiro exigia o pagamento da dívida, preservando os seus negócios, o outro teria optado por deixar a agência quebrar.

Sócio nega envolvimento

Clésio nega a divergência. Candidato a vice na chapa de Azeredo, alega que sua missão era percorrer, entre junho e novembro daquele ano, 350 cidades do interior mineiro. Portanto, estaria bem longe quando seu sócio foi à banca pedir dinheiro para a campanha. Apesar da disputa acirrada, Clésio teve tempo para pensar nos seus negócios. Garante que decidira romper a sociedade antes da contagem dos votos no segundo turno. Calculou a sua participação em R$8 milhões, dos quais R$2 milhões seriam pagos à vista e o restante em dez parcelas de R$600 mil, mas os ex-sócios não honraram o compromisso e ele, em janeiro de 1999, ingressou com uma ação de cobrança na Justiça. Dois anos depois, a ação foi retirada depois que Clésio aceitou quitar toda a dívida por R$1,5 milhão:

¿ Ele é tão envolvente que conseguiu convencer o país todo, não apenas eu.

O fracasso de seus aliados em 1998 não deteve a escalada de Valério, cujas agências já respondiam por algumas das mais cobiçadas contas do governo federal quando tucanos e petistas voltaram a se enfrentar nas eleições de 2002. Virgílio Guimarães recorda-se que foi procurado por Valério no segundo turno, exatamente quando os institutos de pesquisa diziam que a vitória de Lula era inexorável.

¿ Naquele instante, ele concluiu que precisava se apresentar ao PT. Na cabeça de Valério, a melhor pessoa para fazer essa aproximação era eu ¿ lembra-se Virgílio, ao assegurar que só recebeu ajuda na elaboração de peças publicitárias.

O que aconteceu na Lagoa da Pampulha, em 1996, se repetiu com o PT em 2002, só que com mais velocidade. Pouco mais de dois meses depois de conhecer os petistas, em janeiro de 2003, Valério já era figura-chave no partido, ao assumir a publicidade da campanha do deputado João Paulo Cunha (SP) a presidente da Câmara. No ano seguinte, a DNA e a SMP&B ampliaram seus ganhos em contratos oficiais. Valério teve o valor de um contrato aumentado, venceu duas contas novas, nos Correios e na Câmara, e conseguiu prorrogar outros quatro contratos antigos. Suas empresas conquistaram R$150 milhões em contratos com cinco órgãos e estatais, além da Câmara. A história de Valério, daí em diante, está sendo contada pelos integrantes das CPIs (Correios e Mensalão) e por agentes da Polícia Federal, procuradores do Ministério Público Federal, auditores do Banco Central e jornalistas.