Título: A POLÊMICA SOBRE O SUPOSTO DIREITO DE MENTIR
Autor: Adriana Vasconcelos
Fonte: O Globo, 07/08/2005, O País, p. 16

`É um absurdo. Acho que isto é uma deturpação da lei¿, diz procurador sobre o uso do hábeas-corpus preventivo

A CPI dos Correios acirrou o debate jurídico sobre o instituto do hábeas-corpus preventivo. A decisão do Supremo Tribunal Federal de permitir que o empresário Marcos Valério, o ex-secretário-geral do PT Sílvio Pereira e o ex-tesoureiro Delúbio Soares não assinassem o compromisso de dizer a verdade foi interpretada por muitos como "direito de mentir" e levantou dúvidas sobre a interpretação da lei.

O direito ao silêncio é assegurado pela Constituição, que consagra o princípio da inocência. Jurisprudência do STF prevê ainda que ninguém é obrigado a fornecer provas que possam servir contra si, mas nenhum dos casos informa que o acusado tem o direito expresso de mentir.

Para o procurador da República Fábio Aragão, houve no caso uma deturpação da lei:

¿ É um absurdo. Eu acho que isto é uma deturpação da lei. No direito americano, que deveria ser também a nossa interpretação, o juiz pergunta se o réu quer ser interrogado. Se ele disser que sim, terá que jurar até diante da Bíblia que dirá a verdade. A nossa Constituição assegura o direito ao silêncio, e aí vários escritores desenvolveram teses de que o acusado pode faltar com a verdade.

Segundo Fábio Aragão, apesar de o réu não ser condenado por mentir em juízo, pelo Código Penal brasileiro ele poderá ter sua pena agravada:

¿ O artigo 59 do Código Penal prevê que, no momento de fixar a pena, o juiz deve levar em consideração, entre outras coisas, a índole do réu. Um mentiroso nato possui uma personalidade má.

Já o advogado criminal Wanderley Rebello Filho entende que a interpretação da lei está correta e lembra que o acusado não é obrigado a produzir

provas contra si:

¿ O hábeas-corpus preventivo tem também o objetivo de evitar um constrangimento ilegal, um abuso de autoridade, entre outras formas de ilegalidades, como acontece nestas CPIs, onde a testemunha vai diante dos parlamentares para esclarecer fatos e é tratada na verdade como se estivesse na condição de acusado. E, como acusado, ele tem o direito de ficar calado ou até mesmo de mentir, pois não estará cometendo crime. Isto está na lei.

Mentir pode agravar a pena em caso de condenação

Segundo o juiz Luiz Felipe Negrão, titular da 2ª Vara Criminal de Belford Roxo, esta interpretação do Código de Processo Penal (que é de 1941) foi possível a partir da Constituição de 1988 e o STF vem adotando esta posição desde de 1996. Ele explicou que o direito ao silêncio foi inspirado em dois famosos casos julgados pela Suprema Corte dos EUA no século passado. Segundo ele, na maioria dos casos, o STF concede hábeas-corpus apenas para garantir à testemunha o direito de não falar toda vez que a resposta puder incriminá-la. Segundo o magistrado, no caso de Marcos Valério a decisão da ministra Ellen Gracie seguiu em linhas gerais a jurisprudência do Supremo:

¿ Ela deferiu liminar para que Marcos Valério fosse dispensado do compromisso legal de testemunha. Ou seja, ele respondeu como investigado porque já havia investigação contra ele. Nesta qualidade, ele naturalmente se defendeu.

Segundo o juiz, na Justiça criminal o réu também pode mentir, mas o que disser será utilizado contra ele na hora de o juiz decidir a pena.

¿ Um homem é preso acusado de tráfico. Ele diz que estava comprando um refrigerante ao lado da boca de fumo. Esta é uma forma de defesa equivalente a ele permanecer calado. Mas quando ele acusa os policiais de crime, isto pode trazer um aumento sensível na sua pena porque prova também que é mau-caráter.