Título: A BALA QUE ENCONTRA CADA VEZ MAIS VÍTIMAS
Autor: Dimmi Amora
Fonte: O Globo, 07/08/2005, Rio, p. 29

Pelo menos duas pessoas por mês morreram no Grande Rio este ano atingidas por tiros sem direção

Com os olhos marejados, o funcionário do restaurante no Grajaú onde o corretor Jorge Antonio Mirancos, 50 anos, foi atingido por uma bala perdida há dez dias, enquanto jantava com a família, conta que escolheu e reservou a mesa onde ocorreria a tragédia. O sentimento de culpa do funcionário ganha mais força quando ele explica que a mesa estava a mais de cinco metros da janela e que a vítima chegou a ser atendida por paramédicos que também jantavam no mesmo restaurante, munidos de equipamentos de respiração artificial e choque cardíaco. Ainda assim, Jorge não resistiu.

¿ Não dá para entender como isso pode ter acontecido. A bala passou por um monte de gente e o acertou. Fizeram de tudo para reanimá-lo, mas ele já chegou morto ao Hospital do Andaraí, que é aqui perto ¿ disse o funcionário.

O trauma causado por um disparo sem direção é cada vez mais comum no Rio. Um breve levantamento mostra pelo menos 98 casos de balas perdidas entre janeiro e julho deste ano, com pelo menos 19 mortes ¿ quase três por mês, em média.

As maiores vítimas, de acordo com o levantamento feito pelo GLOBO sobre reportagens publicadas nos principais jornais, são moradores de favelas, onde ocorreram 11 crimes. Para as vítimas, é cada vez mais difícil evitar o óbito devido à proliferação de armas de guerra que causam ferimentos mais letais e têm alcance maior. Para os agressores, dificilmente há punição.

Os números oficiais não conseguem classificar a bala perdida. As pistas estão na sensação de médicos, moradores de áreas de risco e estudiosos do assunto. A assessora de Prevenção de Acidente Civil da Secretaria estadual de Saúde, Luciana Phebo, lembra que o estado tem um índice muito maior que a média nacional na relação de pessoas mortas por arma de fogo por pessoas internadas vítimas destas armas. Segundo ela, em 2002 houve no país cerca de 38 mil mortes por tiro para 19 mil internações hospitalares. Ou seja, dois mortos para cada internado. No estado, no mesmo ano, foram registradas pelo SUS 7.240 mortos por tiros contra 1.511 internações. A relação é de 4,7 mortos por internado.

¿ Arma de fogo é um problema de saúde pública. Usamos a classificação da Organização Mundial de Saúde que não fala em balas perdidas. Mas já defendi em estudos que deveria ter ¿ disse Luciana.

Tiro de fuzil causa lesão com 30cm de raio

Para o diretor do Hospital Souza Aguiar, no Centro, José Macedo Araújo Neto, a discrepância entre o número de mortos por tiros no Rio e no restante do país se deve ao tipo de arma usada. Há 20 anos no hospital, ele vem acompanhando a mudança do tipo de ferimento de quem chega à emergência, inclusive o aumento dos relatos de pessoas que teriam sido feridas por balas perdidas.

¿ Antigamente atendíamos muitos casos de balas de revolver. Hoje, grande parte são armas de guerra, feitas para matar. Isso diminui muito a chance de uma pessoa sobreviver ¿ disser o médico, apresentando estatísticas que mostram que diminuiu o número de vítimas de tiro internadas, embora o número de mortos permaneça no mesmo patamar.

O chefe do serviço de cirurgia do hospital, Antônio PantaLeão Júnior, explica que as balas de fuzil são capazes de provocar lesões com 30cm de raio. Segundo ele, isso faz com que seja praticamente impossível salvar alguém atingido:

¿ A energia gerada por esse disparo (de fuzil) é muito forte. Além disso, o alcance da arma é muito longo. Tem sorte quem consegue sobreviver.

Sorte que ele conta ter presenciado de um contínuo que caminhava pela Avenida Rio Branco, no Centro, meses atrás. Ele chegou ao hospital caminhando com uma bala de fuzil na mão, dizendo-se atingido. Os médicos o examinaram e descobriram que ele tinha apenas um pequeno corte no pescoço: a bala tinha perdido força e chegou sem capacidade de causar ferimento maior.

¿ Quando contamos do que aquela bala era capaz, ele desmaiou ¿ contou o médico.

A sorte é para muito poucos. Somente nos três primeiros meses de 2005, o SUS registra uma média de cinco pessoas por dia internadas por tiros no estado. Já a média de homicídios é quatro vezes maior: a maioria nem chega ao hospital. Foi o caso do motorista de ônibus Roberto de Alcântara. Ele dirigia o veículo da linha 406 no Centro quando, segundo testemunhas, houve um tiroteio depois que um policial à paisana reagiu a um assalto. Roberto morreu com um tiro. A mulher dele, Antônia de Alcântara, conta que os dois filhos do casal, de 5 e 12 anos, não esquecem o trauma. O mais velho, Fernando, escreveu sua redação de volta das férias de julho falando da violência.

¿ Às vezes me pego sonhando que ele vai chegar, ou reencarnar, como nesta novela que está passando ¿ contou, chorando, Antônia.

Para delegado, crime é de difícil solução

Se os filhos de Antônia perderam o pai, com o músico Adilson de Assis, de 39 anos, aconteceu o oposto. Seu filho Joanderson, de 19 anos, goleiro do São Cristóvão, morreu com um tiro na cabeça durante um tiroteio entre policiais e traficantes num acesso à Favela da Vila Cruzeiro, na Penha. Triste, ele diz que não quer acompanhar a apuração do caso.

¿ Nada vai devolver meu filho. Saber quem foi não faz a menor diferença ¿ revelou.

Dificilmente se consegue apurar o responsável por uma morte por bala perdida. Nem quando há algum empenho da polícia o caso costuma ter solução. Em março, Sheila Borges de Carvalho foi atingida por um tiro de pistola na piscina do América Football Club, na Tijuca. A perícia descobriu que o tiro só poderia ter vindo de 12 apartamentos de um prédio em frente. A Justiça concedeu mandado de busca e os imóveis foram revistados. Os policiais da 18ª DP (Praça da Bandeira) distribuíram panfletos nos prédios para que testemunhas dessem informações anônimas.

¿ Trabalhamos bastante no inquérito, mas, ainda assim, o crime continua sem solução ¿ lamentou o delegado-adjunto Antônio Serrano.