Título: PITBULLS E ARMAS
Autor: ANTÔNIO RANGEL BANDEIRA
Fonte: O Globo, 11/08/2005, Opinião, p. 7

Ao ser regulamentada e tornada efetiva, a nova lei de controle de cães de raças ferozes no Rio de Janeiro está gerando polêmica. De autoria do deputado Carlos Minc, estabelece o controle de pitbulls, dobermanns, rottweillers, filas e raças derivadas, que não podem mais andar nas ruas sem focinheira e enforcador. Apesar do exagero de se proibir que passeiem durante o dia, essas normas têm o óbvio intuito de proteger as pessoas, ou outros animais, do ataque desses cães bravios.

Deveríamos esperar que a sensatez dessas restrições contasse com o apoio dos proprietários desses cães. Porém, a lei tem provocado reações contrárias. Até mesmo um desembargador concedeu liminar para que um pitbull pudesse andar de dia sem focinheira, em pleno Leblon. Estamos diante de um claro exemplo de litígio entre uma ínfima minoria, que julga lutar por seus direitos, e a coletividade, posta em risco no que representa a garantia básica requerida pelo ser humano: o direito à vida e à segurança.

Impressiona a semelhança entre esse conflito e o que divide os defensores do uso de armas de fogo e aqueles que lutam pelo desarmamento. Até mesmo o nome do pitbull do Leblon, Taurus, declarado livre para morder, é o mesmo do maior fabricante de revólveres e pistolas do Brasil, a Forjas Taurus. Todos os dias, pessoas são atacadas por esses cães, crianças têm o rosto desfigurado, quando escapam com vida, e outros cães são estraçalhados. Mas seus donos, que com eles têm uma relação de afeto, apressam-se a botar a culpa nas vítimas; ou outros proprietários acusam a "negligência dos donos". A culpa nunca é do cão. Chega-se a dar mais importância à liberdade desses animais que a das pessoas, numa inversão de prioridades absurda, só possível numa cultura de extremo egoísmo e desumanização dos valores. Lembra o ex-ministro do Trabalho Rogério Magri, flagrado usando carro oficial para levar seu cão ao hospital: "Cão também é gente." Eu adoro cães, mas gente é, ou deveria ser, mais importante.

Os defensores das armas usam argumentos idênticos. Um grupo, apesar de se dizer nacionalista, repete o slogan da Associação Nacional de Fuzis, que representa a indústria de armas americana: "Armas não matam. Quem mata são as pessoas." Basta desmontar o sofisma esperto: "Se armas não matam, homens sem armas tampouco. Quem mata são homens armados." E digo homens porque mais de um terço das mulheres assassinadas por arma de fogo nas capitais brasileiras foram mortas por seus parceiros íntimos.

Tanto proprietários de cães ferozes quanto de armas de fogo dizem lutar por "seus direitos de propriedade e de escolha". Os criadores, fabricantes e comerciantes, que faturam com as feras ou com as armas, alegam o "direito ao livre comércio". Pois não há direitos que se sobreponham à defesa da vida humana, como estabelece a Constituição. Ora, os incidentes freqüentes demonstram o perigo representado por esses cães, pois treinamento não garante contra tendências inatas. O pitbull é uma raça artificialmente obtida nos Estados Unidos, para "construir" cães de luta. A indiferença pelo seu semelhante, e a banalização da morte, fazem o resto: "Se meu cão me obedece, que me importam os outros?"

Quanto às armas, as primeiras pesquisas realizadas no país estão revelando um quadro assustador. Somos o país em que mais se mata e mais se morre por arma de fogo, com 108 mortes a cada dia. O Brasil é o único país que não está em guerra em que se morre mais por arma de fogo (30,1% das causas externas) do que por acidente de trânsito (25,9%), segundo o novo livro "Brasil: as armas e as vítimas" (vários autores, Editora 7 Letras, 2005).

Cães agressivos e proliferação de armas representam uma ameaça à coletividade. Eles têm de ser controlados, como fizeram os países com mais baixos índices de violência. Os interesses e a inconsciência de uma minoria não podem se sobrepor à segurança da sociedade. Apliquemos a nova lei sobre cães de raças ferozes, atenuando seus exageros, e nos preparemos para votar pela abolição do comércio de armas e munição no referendo popular de outubro. Vamos dizer SIM à vida.

ANTÔNIO RANGEL BANDEIRA é sociólogo do Viva Rio.