Título: DÓLAR FURADO
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 12/08/2005, O País, p. 4

O relator da CPI dos Correios, deputado Osmar Serraglio, definiu a certa altura do depoimento do publicitário Duda Mendonça o núcleo do que está em jogo hoje no país: o fato de parte da campanha eleitoral de 2002 ter sido financiada por dinheiro ilegal coloca em xeque a legalidade de várias eleições, inclusive a do próprio presidente Lula e, mais que isso, a higidez de nosso sistema democrático.

O pagamento do equivalente a cerca de R$10 milhões no exterior para uma empresa de Duda Mendonça, com dinheiro saído de contas de vários bancos pelo mundo, e a suspeita de fraude nos dados enviados pelo Banco Rural começam a demonstrar que os tais empréstimos alegados pelo ex-tesoureiro Delúbio Soares como fonte para pagamentos, ou não existiram ou não explicam toda a dinheirama utilizada pelo esquema montado pelo PT, que tinha inclusive um caixa no exterior.

O que também confirma, mais uma vez, uma denúncia do deputado Roberto Jefferson, segundo quem certa vez o então ministro José Dirceu alegou não poder fazer-lhe um pagamento ¿porque a polícia é meio tucana e prendeu vários doleiros. O dinheiro não está podendo ser enviado do exterior¿.

Cada vez mais distanciado da gravidade da situação, e da enormidade do crime que foi cometido, o presidente Lula continua ativo em busca de apoios. A carta que o presidente Lula enviou à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tinha o claro objetivo de conseguir o apoio político da Igreja Católica que já foi, em outros tempos, grande sustentáculo da luta pela democracia aliada ao PT.

Mas estes foram outros tempos, e Lula corre o risco quase certo de receber uma crítica pública dos bispos brasileiros, que parecem inclinados a atribuir-lhe a culpa por tudo o que está acontecendo nessa crise política. O raciocínio que predomina entre os bispos, e que deve aparecer no documento final da Conferência, é o de que quem delega poderes é responsável pelos atos de quem escolheu como seu delegado, não cabendo a desculpa de que não sabia.

E nem mesmo o sentimento de traição absolveria de culpa quem escolheu mal seu representante, ou não foi capaz de detectar a tempo as malfeitorias que estavam sendo praticadas em seu nome.

O presidente Lula faz claros movimentos em direção aos antigos aliados do PT nas lutas sociais, como sindicatos, líderes estudantis e a Igreja, mas nem a época é a mesma, nem os líderes sindicais e estudantis são os mesmos, e muito menos Lula é o operário intocado que a todos arrebatava com sua pureza de intenções.

Os líderes sindicais foram cooptados pelo governo, que lhes deu e a suas centrais, poderes inimagináveis de dinheiro e atuação política, transformando-os em pelegos burocratas altamente remunerados que tomaram conta da máquina estatal brasileiro.

A outrora gloriosa União Nacional dos Estudantes (UNE), hoje dominada pelo PCdoB, não passa de uma entidade chapa-branca, financiada por generosas verbas do governo federal, sem a mínima capacidade de atuação política independente.

Para culminar a série de indicações que Lula exibe como um aviso à oposição, de que não pretende se render sem lutar, chega ao país o líder da auto-proclamada revolução bolivariana, o presidente da Venezuela Hugo Chávez, professor de mobilização do lumpesinato através de programas sociais assistencialistas com o farto dinheiro do petróleo acima de US$60 o barril. Barril que na Venezuela se transforma em barril de pólvora na luta de classes que divide aquele país.

O presidente Lula, que namora o chavismo a cada crise política, tem apenas o carisma popular do líder venezuelano, ambos conseguem se conectar com o povo diretamente, sem a intermediação parlamentar, como se fossem um deles. O que torna essa relação politicamente proveitosa para eles e perigosa para a democracia, como se vê na Venezuela de hoje, onde o Congresso e o Judiciário são dominados pelos chavistas.

O aparelhamento do estado brasileiro pelos sindicatos e militantes petistas foi uma tentativa nessa direção, e o dinheiro fácil do petróleo foi substituído, na versão tupiniquim, pelo dinheiro fácil das estatais. Desmontado o esquema de corrupção que se espalhou pelo organismo estatal como uma infecção incontrolável, e não sendo o Brasil um país sem instituições sólidas que possa ser submetido à vontade de um líder, resta ao presidente Lula brandir sua indiscutível popularidade como arma contra os que considera ¿inimigos¿.

Enquanto isso, debate-se o presidente na dúvida cruel sobre se deve ou não ir à televisão pronunciar-se oficialmente sobre a crise que domina seu governo. Ele tem resistido às sugestões com um argumento irrefutável: ninguém sabe onde tudo isso vai acabar, e um pronunciamento pode ser desmentido pelos fatos logo em seguida, piorando sua situação política.

Essa dúvida é reveladora do temor que tem da amplitude que pode ter tomado a delegação de poderes que fez a José Dirceu, que chamou um dia de ¿o capitão do time¿, e que Roberto Jefferson hoje identifica como ¿o chefe da quadrilha¿. A discussão relevante já não é mais sobre se Lula sabia ou não sabia, ou até que ponto ele sabia das maquinações de seu braço direito.

Mesmo que não se chegue a nenhum Fiat Elba que o ligue pessoalmente ao valerioduto, já está claramente definida a incapacidade do presidente de se desvincular publicamente de seus parceiros de anos e anos. E o depoimento ontem de Duda Mendonça na CPI dos Correios mostra o porquê.