Título: A HORA DA VERDADE
Autor: LUIZ PAULO HORTA
Fonte: O Globo, 12/08/2005, Opinião, p. 7

Nesse momento trágico da vida nacional, a pergunta que importa é: qual a relação do presidente Lula com a verdade? Até que ponto ele vai nos dizer a verdade?

Talvez não diga toda; talvez não possa dizer toda. Poderia dizer, por exemplo: ¿Sim, eu tinha ouvido falar de coisas esquisitas, mandei apurar e não deram respostas convincentes.¿ Já seria motivo para que o acusassem de desleixo, de omissão, de ter delegado poderes demais; mas esboçaria, ao menos, alguma relação com a verdade. Ele poderia chegar a 2006, quem sabe, com um resto de capital político; a idéia do impeachment seria arquivada, por traumática.

Mas, até agora, o que se viu foi o presidente fugir do assunto, acusar as elites (mas de quê?), acusar o PT, ou dizer, à moda zagalliana, que vão ter de engoli-lo...

Essas escapatórias podem vir de um impulso de temperamento ¿ um último gesto de proteção no tiroteio que aperta. Ou podem ser o conselho fatal dos marqueteiros: a política moderna é feita dessas coisas.

Mas há um dado incontornável: se o presidente se afasta resolutamente da verdade, ele vai ser caracterizado, logo, logo, como mentiroso. Quando se chega a esse ponto, é o fim do caminho.

No caso de Lula, isso seria triste; porque ele tem, de fato, um patrimônio a zelar. Ele não é um aventureiro como o coronel Chávez. Em 25 anos de atividade política, construiu um partido que chegou a se apresentar como alternativa de poder ¿ e isso era importante para o nosso jogo político.

Mais que isso: o presidente/operário estava investido de uma forte conotação simbólica. Ele era o povo chegado ao poder ¿ e daí elogios em todo o mundo (seria uma nova esquerda?), e seus índices de popularidade, que ainda resistem (até quando?).

Agora, estamos num impasse. O que temos visto, todos os dias, são os ¿toreadores¿ da verdade ¿ aqueles que querem desviar a verdade para o canto com as suas capas vermelhas. E não só nas CPIs, mas, de modo suicida, no próprio PT ¿ que também tinha um patrimônio a zelar.

É o que se poderia chamar de mentalidade guerrilheira ¿ um triste subproduto, na política, do caldo de cultura marxista. Nesse contexto, a verdade não interessa; não se trabalha com esse conceito burguês. Interessa a vitória a qualquer custo. Mas é uma visão curta. Nesse momento, ela está bloqueando a própria possibilidade de uma varredura no PT.

Estes são os jogos partidários. Acima deles, bem acima, deveria estar a figura do presidente. No nosso país, presidente é ponto de referência ¿ um pouco como, na antiga Rússia, se chamava o czar de ¿paizinho¿. É o próprio símbolo das instituições. Como imaginar, nesse contexto, um presidente desligado de qualquer relação com a verdade ¿ a um passo de ser chamado de mentiroso?

Como responsável maior pelas coisas da República, o presidente está sob julgamento ¿ ainda que nenhum tribunal se tenha estabelecido até agora para isso. Ele não pode fugir a esse julgamento, e nem transformar-se no seu próprio juiz. Não adianta dizer que ninguém vai lhe dar lições de ética: ele não é o seu próprio tribunal.

Se ele estabelecer alguma ligação com a verdade, se não insistir na tentativa louca de jogar classe contra classe, uma parte do seu capital político talvez sobreviva. E se ele chegar às eleições e perder, isso não será nenhuma tragédia, nem o fim da história do migrante nordestino que virou presidente.

A democracia tem essa vantagem: a derrota não é o fim ¿ como era o fim naqueles países que se diziam representantes do ¿socialismo real¿. Lá, sim, a derrota era uma catástrofe, como ficou sabendo um Malenkov quando perdeu para Krutchov, ou o próprio Krutchov quando perdeu para Brejnev.

Na Inglaterra mal saída da II Guerra Mundial, Winston Churchill perdeu as eleições e foi afastado do poder. Seu comentário: ¿Feliz do povo que pode dispor assim dos seus dirigentes.¿

Em alguns casos, a derrota pode ser o que há de mais pedagógico e salutar. Limpa-se a ficha, e começa-se de novo. Uma derrota eleitoral talvez seja, neste momento, a melhor esperança de um movimento político que sucumbiu às seduções do poder.

LUIZ PAULO HORTA é jornalista.