Título: Realismo mágico
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 28/10/2004, O país, p. 4

Quando Lula esteve pela última vez no Fórum Social Mundial, em janeiro do ano passado, era presidente eleito e já dera mostras de que exerceria o mandato sem a dose ideológica por que muitos ansiavam. Lula foi a Porto Alegre, como fazia há anos, mas de lá pegou o avião para Davos, a estação de esqui suíça onde se realiza o Fórum Econômico Mundial, reunião anual onde os caminhos do capitalismo internacional são debatidos e, de certa forma, definidos. Pela audácia de ir confraternizar com ¿o inimigo¿, Lula foi vaiado no Fórum Social. E foi muito mais bem tratado em Davos, onde virou a atração da reunião e colheu elogios.

A parte dos integrantes do Fórum Social Mundial que vaiou Lula deve estar em polvorosa com sua declaração de que a reunião corre o risco de se transformar em uma ¿feira de produtos ideológicos, onde cada um compra o que quiser e vende o que quiser¿. Lula cobrava dos organizadores do Fórum foco em poucos temas, para que a reunião tenha resultados concretos.

Não é a primeira vez que o pragmatismo de Lula surpreende a esquerda, pragmatismo que levou o deputado federal Delfim Netto a compará-lo com o líder chinês Deng Xiaoping, que iniciou a arrancada da China comunista para a economia de mercado, para quem não interessava a cor do gato, desde que comesse os ratos.

Lula já disse várias vezes que a ideologia morreu, e certa vez surpreendeu seus ¿companheiros¿ mais ortodoxos ao defender uma solução para os transgênicos que, segundo alguns, não poderia ser adotada porque ¿contrariava uma decisão programática do partido¿. Lula rebateu de pronto: ¿Entre o programático e o pragmático, muitas vezes eu vou ficar com o pragmático¿.

O pragmatismo de Lula não chegou ainda a ponto de aceitar as privatizações, e as concessões e parcerias foram a maneira que encontrou de driblar esse incômodo. Mas ele já entendeu que política macroeconômica não tem ideologia, e que tampouco importa se o asfalto para as estradas é privado ou do governo. Aliás, desde que resolveu embaralhar a cabeça dos petistas mais ortodoxos afirmando que nunca fora de esquerda, ainda no seu primeiro ano de mandato, a discussão sobre ideologia no Brasil ganhou nova dimensão.

Líder sindical que aprendeu a negociar sem se deixar levar por questões ideológicas ¿ não confundia o combate à ditadura militar com a negociação salarial ¿ Lula criou o PT para se contrapor ao uso político que achava que outros partidos, especialmente o Comunista, faziam dos trabalhadores nas fábricas.

Embora tenha gostado da vitória do socialista Zapatero na Espanha, Lula se dava bem com o ex-primeiro-ministro José Maria Aznar, que preside a Internacional Democrata de Centro, organização que se contrapõe à Internacional Socialista.

Lula não se esquivou de dizer que chegara à conclusão, depois de uma conversa em Brasília no início de seu governo, de que Aznar não era tão conservador quanto imaginava. E tinha certeza de que Aznar também sabia que ele, Lula, não era tão esquerdista quanto parecia.

Da mesma maneira, o presidente Lula tem revelado a vários interlocutores que uma possível vitória de George W. Bush nas eleições americanas será melhor para o Brasil. Ele e Bush não têm ainda uma relação pessoal como a que Fernando Henrique tinha com Clinton, mas a empatia entre os dois é confirmada por autoridades de ambos os países.

Evidentemente, uma vitória do democrata John Kerry não será lamentada pelo governo brasileiro, mas acredita-se que, passadas as eleições, as negociações comerciais ficarão menos tensas. E, protecionismo por protecionismo, já conhecemos o do governo Bush.

O fato é que a questão ideológica no Brasil refluiu para o centro, embora na atual campanha eleitoral em alguns momentos houvesse a tentativa petista de ressuscitar antigos slogans e pintar adversários como ¿direitistas¿.

Setores importantes do PT ainda atuam com base nas aproximações ideológicas, e o autoritarismo de muitas medidas do governo tem sua raiz em origens políticas revolucionárias ainda não adaptadas totalmente à democracia.

Cada vez mais, porém, esse viés vai sendo superado pelo realismo político que o governo precisa ter para funcionar minimamente.

Quando parecia que com o PT chegava também a esquerda ao poder, o que aconteceu foi uma descambada do governo para a centro-direita, ainda mais agora que Paulo Maluf passou a ser aliado importante na disputa da capital paulista.

O próprio governo Lula se encarregou de levar a disputa política para o centro do ringue, aliando-se a partidos ideologicamente distantes da esquerda, como o PL, o PTB e o PP, em detrimento de partidos como o PDT e o PPS. Sem contar que o PSDB, de aliado quase natural, passou a inimigo preferencial.

Nesses tempos em que a definição de direita e esquerda se embaralha, o filósofo italiano Norberto Bobbio escolheu como parâmetro a questão da igualdade. A direita acentuaria mais a liberdade, enquanto a esquerda poria mais ênfase na desigualdade. Essa definição tornou-se uma bóia de salvação para a esquerda mundial num momento de crise de identidade.

O tema da igualdade permanece como a bandeira da esquerda, mas o processo irreversível de globalização fez surgirem temas políticos e econômicos diversificados e contraditórios, que necessitam muitas vezes de soluções meramente técnicas para serem resolvidos.

Nunca a redução da desigualdade dependeu tanto de decisões técnicas, e não do voluntarismo tão comum na esquerda. Como está demonstrando a dificuldade do governo na implantação do Bolsa Família. São esses os desafios atuais, num mundo onde certezas definitivas não têm mais lugar. E é isso que explica a prevalência do pragmatismo na política econômica e nas relações internacionais, essas influenciadas cada vez menos pelo viés ideológico.