Título: PF PEDE PRISÃO DE 4 POR DESVIO DE TESTES DE AIDS
Autor: Antônio Werneck
Fonte: O Globo, 27/10/2004, Rio, p. 17

Inquérito apurou o sumiço de kits de exame em laboratório da Secretaria estadual de Saúde

Três anos após iniciar uma devassa nos arquivos do Laboratório Central Noel Nutels, da Secretaria estadual de Saúde, a Polícia Federal concluiu pela responsabilidade de quatro funcionários (dois com cargos de confiança) no suposto desvio de 13.619 kits de exames para pacientes portadores do vírus HIV. Todos tiveram a prisão provisória pedida à Justiça Federal. O material que mede a carga viral de pessoas infectadas, estabelecendo os parâmetros para o tratamento, foi avaliado na época em cerca de R$2,4 milhões. O suposto desvio aconteceu em outubro de 2001 durante o governo de Anthony Garotinho, prejudicando o tratamento de milhares de soropositivos em todo o Estado do Rio.

Foram comprados ao todo 20 mil kits

A compra dos kits foi financiada pelo Fundo Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde. O suposto desvio aconteceu depois de os kits terem sido adquiridos pela Secretaria estadual de Saúde. Eles foram comprados ao laboratório Linolab Comércio de Material Hospitalar Ltda. A PF constatou que, ao todo, a Secretaria de Saúde comprou 20 mil kits, mas apenas 6.381 foram identificados no estoque. Para a PF, diversas irregularidades na aquisição, na entrega, no recebimento e no pagamento dos kits de testes de carga viral facilitaram o desaparecimento do material.

Encarregado de investigar o caso, o delegado Hélio Khristian, da Delegacia de Prevenção e Repressão a Crimes Fazendários da PF do Rio, não quis comentar o assunto, mas em representação encaminhada por ele ao juiz Marcello Ferreira de Souza Granado, da 7ª Vara Criminal Federal do Rio ¿ à qual O GLOBO teve acesso ¿ pediu a prisão preventiva de cinco pessoas: a ex-superintendente de Saúde Coletiva da secretaria Yolanda Bravim; a ex-diretora-geral do Laboratório Noel Nutels Cláudia Regina Rodrigues Ribeiro Teixeira; os funcionários do Noel Nutels Roberto Lemos Pereira e Ivone Teixeira Bastos; e Eguinaldo Aguiar Bastos, representante da empresa Linolab Comércio de Material Hospitalar Ltda. O pedido de prisão preventiva será analisado agora pela Justiça Federal. Os acusados negaram que tenha ocorrido desvio.

O processo, que tem mais de nove volumes, foi enviado na semana passada pela Justiça Federal ao procurador-chefe da Procuradoria da República no Rio, Carlos Alberto Aguiar. Ele deverá agora ser distribuído para um procurador do Ministério Público Federal no Rio. O delegado federal também pediu a indisponibilidade dos bens dos supostos envolvidos e pediu à Justiça Federal que decrete a quebra dos sigilos fiscal e bancário de todos os envolvidos.

Octavio Valente Junior, presidente do Grupo Pela Vidda do Rio, um dos que denunciaram o desaparecimento dos kits em 2001, disse que, na época, milhares de portadores de HIV tiveram suas vidas colocadas em risco, uma vez que esses exames são recomendados regularmente para o acompanhamento clínico da evolução da infecção e da doença.

¿ Sem os kits, o médico do setor público, que já não dispõe de tempo para ouvir o paciente, fica limitadíssimo para tomar decisões vitais, como o momento certo de mudar um medicamento ¿ disse Octavio. ¿ Hoje, o Ministério da Saúde tem que socorrer estados, fazendo compras emergenciais desses exames e de outros, para que não haja descontinuidade ou prejuízo nos tratamentos. Além da corrupção, a máquina burocrática do Estado e o setor cartelizado da indústria são ingredientes adicionais para os quais a sociedade tem que estar de olhos arregalados.

Sobre a conclusão do inquérito da Polícia Federal, o presidente do Grupo Pela Vidda acha que pode haver outros envolvidos, que jamais aparecerão:

¿ O resultado da investigação confirma que no Brasil só pagam por seus crimes os que não têm poder e poucos bodes expiatórios com maior poder de mando. Não foram poucas as vezes em que fomos alertados sobre a máfia da saúde em nosso estado e o perigo das denúncias. Gostaria de ter visto outros nomes no processo. A justiça fez-se pela metade.

Sindicância interna também apurou caso

O desaparecimento dos kits também foi investigado por uma sindicância interna aberta pela Secretaria estadual de Saúde. Durante uma vistoria realizada na época no Laboratório Noel Nutels, foram observadas irregularidades como as precárias condições de estocagem dos testes de carga viral. Atualmente funcionária da Fiocruz, Cláudia Regina Rodrigues Ribeiro Teixeira negou qualquer desvio de kits. Ela confirmou que em 2001 dirigia o Noel Nutels, mas deu outra versão para o caso: contou que na época o órgão adquiriu kits manuais (não automatizados) de exames, mas como as unidades de saúde eram automatizadas os kits foram substituídos por outros automatizados, mais caros, mas em número menor.

¿ Tenho tudo documentado. Eu levei o caso à Secretaria de Administração e prestei depoimento ao órgão em março ou abril do ano passado. No início deste ano, fui convocada para prestar depoimento à PF. O depoimento estava marcado para junho. Estive lá, mas o delegado tinha saído para uma diligência. Estou aguardando outra convocação para contar tudo isso ¿ disse Cláudia Regina.