Título: FUGINDO DO PASSADO
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 13/08/2005, O País, p. 4

O pronunciamento do presidente Lula sobre a crise política, tão longamente aguardado, foi insuficiente para dissipar as nuvens negras que estacionaram sobre o Palácio do Planalto, a tal ponto que até mesmo políticos petistas apressaram-se em prever que ele fará um outro, mais aprofundado, talvez ainda neste fim de semana. O próprio fato de ele ter adiado o início da reunião ministerial para se inteirar da edição antecipada da revista "Época", que trazia novas acusações, agora do ex-deputado Valdemar Costa Neto dirigidas diretamente contra ele, mostra bem a situação de fragilidade em que se encontra.

É essa fragilidade que o impede de ser mais incisivo, ou mesmo de transparecer autenticidade, na sua alegação de inocência. Bem que o presidente do PT, Tarso Genro, e a esquerda dissidente, tentam, entre lágrimas e ranger de dentes, fazer uma limpeza radical no partido.

Mas se nem mesmo o presidente Lula tem capacidade de se livrar de um passado que se tornou tão pesado que atrapalha o presente e pode comprometer o futuro, como os mencheviques (grupo minoritário do Partido Operário Social-Democrata dos Trabalhadores russos em 1903) poderão se impor aos bolcheviques, o chamado Campo Majoritário de José Dirceu, que ainda hoje domina o PT? No PT, no entanto, a minoria é que deseja uma mudança radical nos rumos do governo, e ameaça sair do partido.

O grupo de Dirceu domina a tal ponto o PT que provocou o suicídio político do deputado Paulo Pimenta e, de quebra, de toda a bancada petista na CPI, ao forjar uma lista de sacadores do valerioduto (vá lá, dirceuduto) para implicar tucanos e pefelistas. De tão tosca, a manobra acabou abatendo o próprio Pimenta, que perdeu a condição de ser vice-presidente da CPI do Mensalão e quase certamente perderá seu mandato de deputado federal.

O presidente Lula não consegue se livrar ostensivamente de seu passado, e o faz apenas taticamente, porque corre o risco de ser atropelado por novos fatos que desmintam sua propalada ignorância de tudo o que se passava à sua volta, no gabinete ao lado e até mesmo no quarto ao lado, como descreveu o deputado Valdemar.

Na sala, Lula e José Alencar, momentos antes de encerrar o prazo para a oficialização da chapa presidencial, aguardavam as negociações que, num quarto, faziam Valdemar, o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, e o então presidente do partido José Dirceu. "Eles sabiam que discutíamos números", garantiu Valdemar, que pode não ter credibilidade em outras coisas, mas nessa questão tem, assim como seu principal acusador, Roberto Jefferson. Eles têm a credibilidade dos cúmplices.

No relato de Valdemar há também uma peculiaridade que indica os caminhos que tomaram as negociações políticas a partir dali. Diz ele que inicialmente Dirceu não ofereceu nada a não ser "governar juntos". Como essa "conversa mole" não frutificou, passou-se a falar de "coisas sérias", como o dinheiro envolvido na negociação.

Da mesma maneira, na formação do primeiro Ministério, o já então primeiro-ministro José Dirceu fez um acordo político com o PMDB, que foi desautorizado por Lula. A partir daí, a negociação teve que ser feita com os pequenos partidos como o PL, o PTB e o PP, onde o que valia mesmo era o vil metal.

Pode-se afirmar que, na mesma lógica moral torta do publicitário Duda Mendonça, que alega ter aceitado depósitos em dinheiro em paraíso fiscal porque senão não receberia seu pagamento, também Dirceu teria sido levado a negociar apoio político à base dos saques na boca do caixa por pressão dos aliados.

Essa defesa teria sentido caso não houvesse antecedentes de negociações com empresários, empreiteiros, prestadores de serviço em prefeituras petistas há mais de 15 anos, sempre comandados pela direção nacional do partido, que Dirceu domina há anos.

O fato é que o presidente Lula não conseguiu livrar-se do "voto de desconfiança" que informalmente lhe foi dado. Essa desconfiança já se reflete nos índices da sua popularidade, que começam a apresentar queda justamente entre aqueles menos instruídos e de menor poder aquisitivo, o que é um péssimo indício para quem já perdeu, aparentemente em definitivo, os apoios dos formadores de opinião e da classe média.

Ontem mesmo, quando relatou os pontos fortes de sua administração, no discurso que era para se explicar à nação e acabou sendo mais uma tentativa de provar que seu governo não pode ser interrompido, Lula ressaltou as mais de oito milhões de famílias que serão atendidas pelo Bolsa Família até o fim do ano. Esse é o contingente eleitoral, desinformado e necessitado de políticas assistencialistas, que teoricamente lhe garantiria respaldo popular para tentar a reeleição. Pelas pesquisas, já estão lhe faltando.

E provavelmente faltarão mais, pois seu governo já não tem capacidade de controlar a atuação do Congresso. O presidente Lula é o presidente que tem mais medidas provisórias rejeitadas pelo Congresso, ficando atrás apenas, e não por acaso, do ex-presidente Collor. A derrota na medida provisória do salário-mínimo é um exemplo disso.

A manobra da oposição foi completamente irresponsável para quem se diz defensora do equilíbrio fiscal, e obrigará o presidente a vetar o aumento descabido. Com isso, no entanto, embora não tenha sido esse o objetivo estratégico, a oposição colocará o presidente em situação de confronto com seu eleitorado "descamisado", ao mesmo tempo em que ganhará mais um tema de discurso popular. (Continua amanhã)