Título: BATALHA DE OPINIÃO
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 14/08/2005, O País, p. 4

O cientista político Octávio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas no Rio, registra o que classifica de uma ¿trágica regularidade histórica¿ no Brasil: todo presidente que não formou maioria parlamentar, ou que a perdeu, não conseguiu terminar o mandato. Ele enfileira os casos de Getúlio Vargas em 54, Café Filho em 55, Jânio Quadros em 61, João Goulart em 64 e Collor em 92, para chamar a atenção para um problema que, segundo ele,¿tem sua raiz na estrutura constitucional do presidencialismo, em que não existe um mecanismo institucional que permita uma solução rápida de uma crise de governo, principalmente quando ela envolve o Executivo e o Legislativo como agora¿.

O expediente que existe é o impeachment, que passou a ser discutido abertamente pela oposição a partir do depoimento do publicitário Duda Mendonça na quinta-feira. Por enquanto não há nem clima político nem disposição política da oposição para forçar um processo de impeachment, embora tenham resolvido começar a estudar o assunto, inclusive do ponto de vista jurídico. Há várias questões a analisar.

O procurador regional da República Cosmo Ferreira lembra que o artigo 86, parágrafo 4º , da Constituição da República, garante imunidade ao presidente, durante o seu mandato, por fatos estranhos ao exercício de suas funções. Sendo assim, o presidente da República não pode sofrer processo de impeachment por ter se utilizado de recursos financeiros ilícitos na sua campanha. E eventual processo criminal só poderia acontecer depois de findo o seu mandato.

Mas se ficar provado que o dinheiro ilegal foi usado na campanha presidencial, há interpretações na oposição de que o mandato de Lula estaria anulado por abuso de poder econômico. E como o pagamento foi feito já no decorrer do mandato do presidente, e com dinheiro de caixa dois, os atos ilegais teriam sido praticados já com Lula na Presidência.

De qualquer maneira, o mecanismo do impeachment ¿é muito radical e complicado de adotar, por exigir uma maioria qualificada¿, ressalta Amorim Neto, para lembrar que ¿como não existe o voto de desconfiança como no parlamentarismo,¿ a oposição leva a batalha para a opinião pública. É o que aconteceu em 54 com o Getúlio. A UDN levou a batalha para a opinião pública e ganhou. A resposta que Getúlio deu foi se antecipar a um possível impeachment ou a um golpe militar e se suicidou.

Os mecanismos podem variar de país para país, ou de Presidência para Presidência, e o cientista político lembra o caso de João Goulart, que perdeu a maioria, ¿radicalizou o seu programa e acabou recebendo um golpe de estado¿.

Levar seu governo para a esquerda é uma alternativa a que o presidente Lula finge estar disposto de vez em quando, se a crise política aperta. Como a tônica de seu governo é a incongruência, Lula dormiu na quarta-feira depois de ouvir conselhos políticos de Hugo Chávez, e abriu seu discurso na manhã seguinte fazendo uma profissão de fé na democracia brasileira e na solidez de suas instituições.

O quase-ditador da Venezuela saiu do encontro com o presidente Lula dizendo de maneira indireta que está em curso no Brasil um golpe semelhante ao que sofreu há anos, quando ficou fora da Presidência durante alguns dias. Uma versão ¿bolivariana¿ do complô das elites, que o presidente Lula usou em alguns palanques, mas arquivou temporariamente.

Octávio Amorim Neto vê algumas semelhanças, em outra situação histórica, entre o caso de Lula e o do ex-presidente Fernando de la Rúa na Argentina: ambos foram eleitos numa plataforma mais à esquerda, em oposição a um presidente que ficou durante dois mandatos implementando uma política econômica liberalizante. Os dois acabaram adotando a política econômica do governo anterior, e nos dois casos houve escândalos de corrupção.

A diferença entre os dois casos, ressalta Amorim Neto, é que a economia brasileira está indo bem, e a da Argentina entrou em colapso, com manifestação nas ruas de Buenos Aires com 20 mortos. ¿Lula se precaveu contra isso nomeando o presidente da CUT para o Ministério do Trabalho¿, analisa Amorim Neto, lembrando que quem fez a mobilização para a derrubada de Collor foi a CUT junto com o PT.

Ele cita ainda o caso de Alejandro Toledo, do Peru, ¿que só tem apoio de 7% da população, mas está conseguindo chegar até o fim de seu mandato porque a economia vai bem, cresceu cerca de 4% ao ano nos últimos quatro anos, e, sobretudo, fez um acordo com a oposição¿. Ontem, todo o Ministério peruano pediu demissão para Toledo refazer seu governo em coalizão com a oposição.

Lula ainda tem popularidade junto à opinião pública pelo relativo crescimento da economia, mas a última pesquisa Datafolha já mostra um declínio, que deve ser a tendência daqui para a frente. Segundo os estudiosos americanos, um político que deseje a reeleição tem que se manter acima dos 50% de aprovação, e ficar abaixo dos 20% de ruim e péssimo. A pesquisa do Datafolha mostra Lula com apenas 31% de aprovação, no pior índice desde sua eleição. E com 26% de ruim e péssimo.

Mas a alternativa política de fazer acordo com a oposição não parece um caminho fácil para Lula, nem ele sinalizou essa disposição no discurso de ontem. No caso, o único acordo possível teria que ser a sua desistência da reeleição, já que a oposição não consideraria um acordo formal de adesão a um governo enfraquecido e sem grandes perspectivas no momento. A pesquisa que mostra o prefeito paulistano José Serra já vencendo Lula num hipotético segundo turno da eleição presidencial é um fato político que enfraquece mais ainda a capacidade de barganha do presidente Lula.