Título: O êxodo causado pela violência
Autor: Paula Autran e Selma Scmidt
Fonte: O Globo, 14/08/2005, Rio, p. 20-21

Insegurança leva a abandono e degradação de áreas de bairros tradicionais do Rio

Que o Rio cresce em direção à Zona Oeste, não é novidade. Mas, nos últimos anos, apesar de continuar se expandindo, a cidade formal vem perdendo terreno por todos os lados. São ruas, quarteirões e áreas de bairros tradicionais que, por causa da violência, têm sido abandonados por moradores e comerciantes. No Joá, por exemplo, a sensação de insegurança pode ser medida pelas dez placas de ¿vende-se¿ ostentadas por imóveis, em geral abandonados, ao longo da Estrada do Joá. A região ainda não chegou ao ponto de ser ocupada por traficantes. Mas, no extremo oposto da cidade, no trecho da Avenida Brasil que vai do Caju a Ramos, filiais fechadas de empresas como Mc Donald¿s e Borgauto foram invadidas ou depredadas, engolidas pela favelização.

São Conrado, Gávea, Tijuca e Jacarepaguá também perdem espaço para a violência. Nas proximidades do Morro do Borel e da Cidade de Deus, duas lojas do supermercado Carrefour tiveram as portas fechadas em nove meses. A primeira, em Jacarepaguá, rendeu-se em novembro de 2004 após um saque. A outra, na Tijuca, encerrou as atividades em fevereiro deste ano. Já em São Conrado, os comerciantes ainda resistem bravamente, apesar dos prejuízos trazidos pelos confrontos entre traficantes da Rocinha e do Vidigal com a polícia. Mesmo tendo perdido 80% da clientela noturna desde o ano passado, a direção do motel Escort, na Estrada da Gávea, ainda não pensa em mudar de endereço.

O sociólogo Luiz Cezar de Queiroz Ribeiro, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ, teme que imóveis desocupados sejam invadidos, com a desistência dos donos de manter a vigilância dos lugares:

¿ Há um processo de declínio econômico e urbanístico nessas áreas. As pessoas que têm mais recursos saem ¿ diz ele, que sugere mais investimentos em políticas habitacionais e no sistema de transportes. ¿ A degradação é produto da estagnação econômica e do crescimento da violência. Mas é perigoso estabelecer uma relação direta entre processos de degradação urbana e favela. O que se pode dizer é que as favelas se tornaram lugares melhores para o tráfico.

Na linha de tiro, aluguel cai 50%

Segundo o presidente da Associação Brasileira de Administradoras de Imóveis (Abadi), George Masset, a degradação provoca desvalorização de 30% nos aluguéis de imóveis. A queda de preço pode chegar a 50%, caso o imóvel esteja na linha de tiro. Mais difícil ainda é vender imóveis usados em áreas de risco.

¿ Não existe mercado para a compra em área de risco ¿ diz Masset.

O mercado acompanha a falta de demanda. O presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi), Márcio Fortes, diz que não estão sendo lançados novos prédios nessas regiões:

¿ A Bulhões de Carvalho da Fonseca, que atuava basicamente na Tijuca, fechou.

O presidente da Associação de Moradores da Tijuca, Dênis Darzi, aponta as ruas São Miguel e Conde de Bonfim, entre a Rua Uruguai e a Usina, como as mais degradadas do bairro. Uma caçamba em frente ao número 552 é um exemplo de que tudo é possível na Rua São Miguel: ela bloqueia uma das pistas, obrigando os motoristas a seguirem pela contramão.

Entre a Rua Uruguai e a Usina, 12 cartazes afixados em janelas da Conde de Bonfim anunciavam semana passada que os imóveis estavam à venda ou para alugar. Um apartamento de quatro quartos e 242 metros quadrados ali está sendo oferecido há um ano por R$200 mil. Luiz Oliveira, pai do dono, não atrela o desinteresse pelo imóvel à violência. Para ele, as razões são o preço do condomínio (R$605) e a uma única vaga de garagem. Mas o presidente da Abadi faz uma comparação definitiva: um apartamento usado, com 120 metros quadrados na Avenida Oswaldo Cruz, no Flamengo, está custando R$300 mil.

Também na Conde de Bonfim, na vidraça de uma antiga revendedora da Fiat, a marca de um tiro é mais um sinal de que a violência atinge o asfalto. Na mesma rua, permanece o tradicional Colégio São José, cujo número de alunos diminuiu de três mil, há dez anos, para 1.800. Lá, entre as medidas que a direção adotou para tentar garantir a segurança, está a colocação de chapas de ferro nas janelas das salas de aulas, segundo o diretor-geral, irmão José Augusto Alves.

¿ Mantemos as janelas abertas e, em caso de situação de risco externa, fechamos ¿ diz ele, acrescentando que o São José também adotou uma política de boa vizinhança com as comunidades carentes ao redor, empregando e oferecendo programas a vários moradores dos morros do Borel, da Formiga e do Recanto do Sabiá.

Apesar dos pesares, a assessoria do Carrefour nega que o motivo da desativação da filial da Tijuca seja a violência. Alega que o estabelecimento era deficitário, situação igual à da outra unidade que fechou na Cidade de Deus. Da mesma forma, o Mc Donald¿s não cita a proximidade com a Favela Nova Holanda como a causa do fechamento de uma unidade da Avenida Brasil ¿ que funcionou por 14 anos até novembro de 2003 ¿ mas sim a falta de clientes. O prédio é hoje um esqueleto: foi todo depredado.

Seguindo pela Avenida Brasil, cercada por favelas e imóveis desocupados ou subutilizados, a Fundação Oswaldo Cruz se mantém. A Refinaria de Manguinhos poderá fechar as portas, por razões econômicas, degradando ainda mais a região.

¿ Ao invés de abandonarmos o espaço, criamos vínculos com as comunidades ¿ diz o presidente em exercício da Fiocruz, Paulo Gadelha.

A Fiocruz, no entanto, não fica a salvo de balas perdidas, devido a confrontos entre quadrilhas e entre bandidos e policiais. Tanto que se chegou a discutir a possibilidade de blindar janelas, mas nada se decidiu.

¿ O risco é real. Por precaução, recomendamos a nossos funcionários a não estender os seus horários de trabalho além das 18h ¿ diz Gadelha.

Mais de 20 placas de ¿vende-se¿ ou ¿aluga-se¿ espalham-se pela Avenida Brasil entre o Caju e Ramos. Um enorme cartaz anuncia há seis meses a venda de um prédio de quatro andares. O dono, Marcelo Coutinho, quer R$3 milhões pelo imóvel, avaliado há três anos em R$5 milhões:

¿ Não posso diminuir mais o preço. O imóvel fica a dez minutos do Centro. As autoridades têm de dar mais atenção à área.

O cenário da Avenida Leopoldo Bulhões, paralela à Brasil, é ainda pior. Dos dois lados da via as favelas se sucedem. O que era um depósito da Conab foi invadido. O prédio do Tribunal Regional Eleitoral está fechado. Além da Fiocruz e da Refinaria de Manguinhos, resistem uma escola municipal, um Ciep e o centro de triagem dos Correios.

¿ Situações graves, como a de Manguinhos, decorrem da perda de controle territorial do Estado brasileiro para o tráfico. Esta é uma das conseqüências mais graves da crise de segurança que atinge o Rio e já se reflete há tempos em bairros como Inhaúma, Jacaré, Caju e outros do subúrbio ¿ avalia o secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis.

Na Zona Sul, o problema se agrava. O prédio 512 da Rua Marquês de São Vicente, na Gávea, já tem uma divisão clara. Todos os apartamentos têm 200 metros quadrados, mas os de fundos, que dão para o Instituto Moreira Salles, são mais valorizados. Os proprietários dos imóveis de frente, voltados para a Favela Parque da Cidade, vêem os preços despencarem.

¿ Acho um absurdo a prefeitura deixar a Favela Parque da Cidade se expandir. Quando fui morar ali, havia apenas uma pequena vila em frente ¿ conta a arquiteta Patrícia Quentel.

Ela morou no prédio por 12 anos e saiu de lá há dois. Na ocasião, um imóvel voltado para o instituto foi vendido por R$450 mil.

¿ Os virados para a favela ninguém quer comprar. Não dá nem para estimar um preço ¿ diz a arquiteta.

São Conrado tem se mostrado a mais recente vítima da crise. De um ano para cá, quando estourou a guerra entre traficantes da Rocinha e do Vidigal, o motel Escort, há 20 anos na Estrada da Gávea, perdeu 80% dos seus freqüentadores noturnos.

¿ É uma questão psicológica: as pessoas têm medo de vir ¿ lamenta o dono do motel, Manoel Malheiros.

Motéis querem isenção de IPTU

Proprietário dos motéis Shalimar e Sinless, na Avenida Niemeyer, Antônio Cerqueira foi além:

¿ Acabo de entrar com uma ação na Justiça pedindo isenção de IPTU por estar em área de risco. Estudo também uma ação contra o estado, responsabilizando-o pelos prejuízos.

Não por acaso, os pedidos da Disk Cook ¿ que faz entrega para 50 estabelecimentos ¿ aumentaram 80% em São Conrado em julho, quando a Rocinha viveu outra onda de violência. Tina Inalda, dona do restaurante Take ¿ vizinha do Escort há 25 anos ¿ capitulou e mudou-se para a Gávea.

¿ Chegou a um ponto em que 40% dos clientes pediam entrega em casa ¿ conta ela, acrescentando que há um ano o proprietário do imóvel tenta alugá-lo de novo.

Mesmo funcionando de dia, os colégios Espaço Total e Carolina Patrício, na vizinhança há mais de 20 anos, estão sofrendo as conseqüências dos problemas de segurança no bairro.

¿ Do ano passado para cá, perdemos 20% dos alunos ¿ conta Gilda Freitas, sócia do Espaço Total.

Como Gilda, Noemi Simões, sócia do Carolina Patrício, espera ações do poder público que impeçam a perda de mais um pedaço da cidade:

¿ O problema não é a Rocinha, cuja população também é vítima.