Título: MANOBRA RADICAL
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 16/08/2005, O País, p. 4

Pela primeira vez em toda essa crise, o fato político mais relevante está sendo gerado pelo Palácio do Planalto: a especulação de que o presidente Lula pode vir a deixar o PT. Em que pese a possibilidade de uma revelação contundente do doleiro Toninho da Barcelona ou da cafetina brasiliense Jeany Corner colocar a perder todo esse esforço governista, o fato é que essa decisão, se acontecer, muda completamente o quadro político nacional.

A crise em que o governo está envolvido é tão grande, e tem ramificações no submundo tão amplas, que a ameaça vem de proxenetas e traficantes, e somente uma decisão dramática quanto ao rompimento do símbolo com sua criação poderia mudar o jogo a favor de Lula, pelo menos momentaneamente. Isso porque o rompimento do presidente com o PT só teria sentido caso ele resolvesse terminar com serenidade e dignidade o seu mandato, sem, portanto, se candidatar à reeleição, e anunciando uma série de propostas políticas, inclusive o fim do direito à recandidatura já na próxima eleição. E, evidentemente, sem entrar para um outro partido, pois se assim agisse estaria banalizando seu gesto. Com a manobra radical, se transformaria em um grande eleitor.

O discurso do presidente Lula na sexta-feira passada já irritou seriamente militantes petistas, ligados ou não ao Campo Majoritário. A impressão generalizada é de que o presidente se atribuiu todos os méritos pelo PT que decidiu criar para exemplificar a ética na política, e se eximiu de todos os malfeitos do partido, embora tenha sido sempre o líder do Campo Majoritário que domina o partido há anos ¿ José Dirceu sempre foi executor do grupo ¿ e tenha manobrado para indicar a atual direção, em uma intervenção tão acintosa que retirou dele a credibilidade para afirmar, como fez no discurso da Granja do Torto, que estava afastado do partido.

Além do fato de o ex-tesoureiro Delúbio Soares ser uma indicação sua, e não de José Dirceu, como sabem todos dentro do partido. Se o presidente Lula chegar ao extremo de se afastar publicamente do PT para tentar desconectar-se de seu passado, a sucessão presidencial ganhará outra dimensão, a começar pelo próprio PT.

O presidente do PT, Tarso Genro, diz que não quer ser candidato a presidente na eleição direta marcada para setembro, especialmente pelo Campo Majoritário, que ainda domina o partido como ficou demonstrado na última reunião do diretório nacional que não conseguiu demitir Delúbio Soares.

Genro tem tido um diálogo com a esquerda do partido considerado muito fecundo e franco. Não seria impossível que ele viesse a ser o candidato à Presidência da República desse novo PT. Para tal, no entanto, ele teria que se comprometer com a esquerda do partido, podendo haver já na eleição do próximo mês uma composição de transição mais à esquerda.

Se essa manobra vingar, Tarso Genro, que foi tirado do Ministério da Educação e colocado na direção do partido pelo presidente Lula para representar os interesses do Campo Majoritário, acabaria abandonando o grupo do ex-ministro José Dirceu para tentar chefiar o novo partido.

Lula e Tarso, assim estariam, cada um à sua maneira, abandonando Dirceu à própria sorte. Acontece que Dirceu, apesar de fragilizado politicamente e com a cabeça a prêmio, ainda mantém o controle da máquina partidária, e tem seus trunfos na manga. Seu candidato à presidência do partido é o atual secretário-geral Ricardo Berzoini, que já entrou em rota de colisão com o presidente Tarso Genro em mais de uma oportunidade. Apoiou, por exemplo, a tese de Dirceu de que não se poderia negar liminarmente a legenda do partido a quem renunciasse ao mandato de deputado, como queria Tarso.

A esquerda do PT não tem a ilusão de que o presidente Lula vá mudar a política econômica, ainda mais agora fragilizado do jeito que está. Caso Lula saia do partido, o PT voltaria a ser oposição, uma oposição constrangida e sem muita garra. Ou pelo menos teria uma postura de independência. A grande pergunta é: o PT sem Lula existe? O deputado Chico Alencar, um dos líderes da esquerda do partido, acha que sim. Lembra que a resolução da CNBB tem um trecho em que diz que a sigla PT importa menos que a experiência petista ¿de tentar construir um partido com interlocução com os movimentos sociais, a partir da base, que não é só congressional e eleitoral¿.

Para Alencar, ¿galvanizando esses movimentos, sendo a voz dos que não têm voz, mantendo esse compromisso¿, o PT não deixará essa experiência se perder. Frei Betto, outro fundador do PT a partir das comunidades eclesiais de base (Cebs), que foi assessor especial do presidente Lula e deixou o governo por discordar do rumo que estava tomando, especialmente os programas sociais como o Bolsa Família, lembrou em reunião de petistas no fim de semana que ¿o povo de Canaã levou 40 anos para chegar à Terra Prometida. Moisés não chegou a ver a Terra Prometida. Mas ela existe¿.

Os petistas de fora do Campo Majoritário estão dispostos a lutar até o final para retomar a utopia. Mas, como diz o deputado Chico Alencar, isso só será possível se ¿os Josés, os Paulos e os Joões¿, saírem agora. O PT ficaria menor, perderia densidade eleitoral, mas poderia se recompor. Caso o Campo Majoritário demonstre continuar dominando o partido, a debandada será geral.