Título: O LEGADO DE SÉRGIO VIEIRA DE MELLO
Autor: Jacques Marcovitch
Fonte: O Globo, 18/08/2005, Opinião, p. 7

Dentro da imensidão histórica é sempre muito breve a lembrança das gerações. Por maior que seja o impacto momentâneo de certos acontecimentos, o bater dos dias sobre os dias acaba por esmaecer o seu significado. Para evitar que isso aconteça com a memória de um grande homem desaparecido há dois anos, aqui estamos evocando o seu papel na estrutura da ONU e na construção da paz mundial. Logo após o atentado de 19 de agosto de 2003, o jornalista Jonathan Steele, do "Guardian", registrou em artigo uma definição que ouvira sobre Sérgio Vieira de Mello e que resumia todo o sentido da atuação do nosso compatriota: "O melhor servidor público do mundo." De fato, ele foi, durante a vida inteira, um funcionário da Humanidade.

Definições nem sempre revelam prontamente o seu completo significado. O que é verdadeiramente um homem público? Cabem nessa classificação apenas os indivíduos cujas atividades parlamentares ou de governança têm grande notoriedade perante seus compatriotas? Ou também aqueles outros, igualmente devotados às questões de interesse público e, no entanto, atuando sem a visibilidade dos primeiros? Entendemos que ambos merecem a designação. Entre os primeiros estão os políticos a quem cabe a tarefa de retratar e inspirar os mais elevados anseios de uma comunidade. Entre os últimos, pela natureza de suas ocupações, acham-se os diplomatas e os altos funcionários de organizações multilaterais, como Sérgio Vieira de Mello.

Como alto comissário para os Direitos Humanos, missão cujo desempenho se interrompeu brutalmente pela morte, ele afirmou certa vez que era dever da Organização proteger os direitos humanos antes de empreender manobras diplomáticas: "Os povos em primeiro lugar, não a política." Os fatos, em sua visão, contavam mais do que as palavras, e as demandas por direitos exigiam proteção concreta e não apenas vagas resoluções.

O grande exemplo de Sérgio Vieira de Mello está na aquisição do conhecimento como forma de exercer com êxito a sua missão. Ele não foi apenas o homem das decisões acertadas, mas um intelectual dedicado à filosofia e à História, duas chaves mestras para a compreensão das relações internacionais. Mais especificamente para os que estudam esse tema, o legado de Sérgio é o da crença no diálogo e na democracia, mesmo em condições terrivelmente desfavoráveis. O que ele fez em Kosovo, Timor Leste e outras regiões tragicamente dominadas pelo caos revela uma grande capacidade agregadora e uma eficiência administrativa fora do comum. Porém, como pano de fundo em sua personalidade, sempre encontramos o culto permanente aos valores de respeito ao outro e da liberdade.

Os textos que produziu em forma de ensaios, artigos, aulas magnas, discursos e conferências realçam algo fundamental que o mundo não sabia a seu respeito. Ele sempre foi visto como um executivo de grande competência nos quadros da ONU. Confirma-se o perfil em seus escritos, mas surge um traço que não era percebido: o de intelectual extraordinariamente bem formado.

Esperamos que a rememoração do pensamento e da ação de Sérgio Vieira de Mello contribua para um balanço internacional de perdas e ganhos neste início de milênio. Entre as perdas, a morte prematura de um grande brasileiro, como vítima da insensatez humana. Entre os ganhos, as muitas vidas que ele salvou pelo uso generoso da persuasão. Um balanço necessário, não apenas porque morreu tragicamente em seu posto, mas por tudo que fez em vida, Sérgio se tornou digno da reverência universal. É um brasileiro que entrou definitivamente na História do mundo.

JACQUES MARCOVITCH é professor de Relações Internacionais da USP.

Ele foi, durante a vida inteira, um funcionário da Humanidade