Título: CAMISETAS EM VEZ DE FRUTAS
Autor: Carla Rocha, Dimmi Amora e Maiá Menezes
Fonte: O Globo, 19/08/2005, Rio, p. 16

Estado usou mais verba do Fundo de Pobreza com propaganda do que com incentivo a agricultores

Dados do Sistema de Acompanhamento Financeiro (Siafem) revelam que o governo estadual fez um investimento considerável na aparência dos agricultores. A compra de bonés e camisetas com dinheiro do Fundo Estadual de Combate à Pobreza (FECP), feita pela Secretaria de Agricultura, Abastecimento e Pesca, representou nada menos do que 31% de toda a verba empenhada (reservada para gastar) no âmbito dos programas Florescer e Frutificar, que visam a incentivar a produção rural. E mais: o dinheiro destinado às camisetas que fazem a propaganda dos programas é quatro vezes maior do que a verba usada para financiar os agricultores que, no ano passado, tiveram apenas R$17.782 em empréstimos efetivamente pagos.

Os números levantados mostram que foram reservados R$231.683 para os programas Frutificar e Florescer em 2004. Quase um terço desse total foi para os kits de bonés e camisetas: R$71.831, pagos à empresa Galardão Comércio e Serviços Ltda.

- O governo deve estar adubando e irrigando a terra com o tecido dos bonés e das camisetas. Isso é um completo desvio da finalidade dos recursos - disse o deputado Luiz Paulo Corrêa da Rocha (PSDB).

O Fundo de Combate à Pobreza, criado com o aumento de ICMS com o objetivo de financiar projetos sociais, teria arrecadado R$1,8 bilhão no ano passado, mas este número está sendo questionado por parlamentares da oposição no Tribunal de Contas do Estado (TCE).

Ontem, a governadora Rosinha Garotinho disse ontem que as aplicações financeiras do fundo são legais.

- Nós estamos dentro da lei. Todos os serviços foram realizados, tudo foi entregue. Mas, se houver problemas, vamos investigar - disse a governadora.

Por intermédio da assessoria do governo, a Secretaria de Agricultura confirmou que as camisetas e os bonés comprados com recursos do fundo, conforme O GLOBO noticiou, eram destinados ao Frutificar e ao Florescer. Na prática, a previsão de gastos para esses dois programas não se concretizou. As despesas foram bem menores, de acordo com consulta feita no Siafem pelos deputados Luiz Paulo e Alessandro Molon (PT). De uma expectativa de gastos de R$2,5 milhões com verba do fundo, além de R$800 mil de royalties do petróleo, só foram empenhados R$312 mil.

O governo do estado contesta os números. A Secretaria de Agricultura garantiu ontem que em 2004 foram empenhados R$2 milhões, incluindo todas as fontes de recursos, para esses programas. Também informou que só o Frutificar, criado em 2000, recebeu mais de R$30 milhões.

Sindicalista critica despesas com roupa

Além dos R$71.831 pagos pelos bonés e pelas camisetas, a Galardão ainda recebeu

R$30.169 por serviços prestados a outros programas da mesma secretaria.

Os gastos com vestuário foram criticados pelo presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Campos, José do Amaral:

- Não há razão para distribuir bonés e camisetas no programa. Isso é errado.

Os empréstimos para produtores rurais também minguaram. Da previsão de se gastar R$950 mil no Frutificar, apenas R$17.782 foram usados para financiar a produção rural. O produtor Isaac Azeredo, diretor da área de fruticultura do sindicato de Campos, afirmou que os financiamentos estão cada vez mais escassos:

- Houve um ou outro, mas não deu certo. Faltou assessoria técnica - disse.

A empresária Márcia Padrão, dona da empresa Galardão, uma papelaria em Teresópolis, afirmou que ganhou a licitação para fornecer cerca de 50 mil camisetas. Ela disse que já entregou todo o material, mas que recebeu apenas uma parte do valor contratado. As camisetas e os bonés (cuja quantidade ela não soube especificar) foram entregues com inscrições dos programas.

- Quando vi a quantidade de camisetas, achei até que era para mais de uma secretaria - afirmou Márcia, acrescentando que participa de licitações públicas e terceiriza o serviço. - Costumo brincar que vendo do botão ao avião. Mas a minha empresa está certinha.

O dinheiro do fundo serviu também para fazer folhetos e cartazes. O GLOBO obteve o material destinado aos produtores rurais que trata de campanhas contra a raiva dos herbívoros (trazendo a foto de um morcego), a febre aftosa e a anemia eqüina, entre outros problemas. O governo disse que a lei que criou o fundo permite a aplicação de recursos em qualquer programa de combate direto ou indireto à pobreza. O secretário-chefe do Gabinete Civil, Fernando Peregrino, afirmou que não vê problemas no pagamento dos folhetos.

- A desinformação é responsável por 70% das doenças. É importante que os produtores rurais, que no Brasil são relativamente rudes, se previnam. Qualquer ação que diga respeito a saúde, educação, nutrição e saneamento está atingindo as 53 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza no país.

Sede de bufê na Ilha ainda é um mistério

No novo endereço dado pelo governo, não há letreiro e ninguém atende a campainha

No novo endereço informado pelo governo estadual para a Delicadíssimo Coquetéis e Buffet - que recebeu R$7.920 do Fundo Estadual de Combate à Pobreza - ninguém foi encontrado ontem. O estado explicou que a empresa, entre a contratação e o pagamento do serviço, havia se mudado do Morro do Dendê para o bairro do Zumbi, ambos na Ilha do Governador. Mas lá, numa área residencial perto da Praia das Pitangueiras, a casa onde funcionaria o bufê não tem qualquer letreiro. Ninguém atendeu a campainha.

A advogada da empresa, Fátima Borges, foi sucinta:

- O estado é que tem que dar as explicações - disse.

Inicialmente, a assessoria do governo havia informado que a Delicadíssimo fazia brunch (um café reforçado) e café para agentes de saúde em treinamento. Anteontem, uma nova informação: a empresa, que tem prestado outros serviços para o estado, no caso específico do repasse do fundo forneceu lanches para um seminário sobre mortalidade materna reunindo 400 médicos, no dia 21 de maio, no Hospital dos Servidores, dentro do programa Gerar Vida.

A assessoria do estado informou que a Stolt - que recebeu R$3.975 do fundo pela Secretaria de Agricultura - a partir das denúncias do GLOBO, foi retirada do cadastro de fornecedores. Ontem, foi mostrado que a empresa nunca funcionou em Belford Roxo, onde há uma clínica médica.

Sem função, conselho pode sofrer debandada

OAB e Ação da Cidadania estudam afastamento do grupo que fiscalizaria uso de recursos

Apontados pela lei como fiscais do Fundo Estadual de Combate à Pobreza, representantes de pelo menos duas entidades estudam o seu desligamento do conselho gestor criado para acompanhar a execução orçamentária dos recursos. Indicada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para integrar o grupo, a advogada Regina Arraes informou ontem que está pensando em propor o desligamento ao conselho da entidade:

- Eu não posso me responsabilizar pelo que está sendo feito. Eles fazem questão de não chamar ninguém para reuniões, para depois fazerem o que quiserem. Usam o nome da ordem para dar credibilidade ao fundo e acho isso perigoso - disse Regina, criticando a compra de bonés e camisetas com recursos do fundo.

A advogada contou ainda que chegou a ser convocada duas vezes para participar de reuniões que decidiram o funcionamento do conselho, uma no dia 5 de maio e outra no dia 14 de julho de 2003. Depois disso, não houve mais reuniões. Ela começou, então, a receber balancetes do fundo, sem regularidade. O conselho seria formado por seis secretários de estado e representantes de seis entidades (Firjan, Fecomércio, ABI, OAB, Faerj e Ação da Cidadania).

O coordenador da ONG Ação da Cidadania, Maurício Andrade, disse que vai tentar reunir as entidades que têm assento no conselho do fundo para tomar uma posição conjunta sobre o assunto. Ele considera importante haver participação popular nesse tipo de órgão de gestão do estado.

- Não é uma situação cômoda a gente ficar tanto tempo deixando de cobrar e agora sair. Vamos tentar uma posição conjunta para saber se podemos fazer alguma coisa para melhorar a gestão do fundo. Caso não seja possível, vamos sair - disse Andrade.

Legenda da foto: FLORICULTURA do Florescer: o objetivo seria dar recursos e assistência técnica aos produtores