Título: O pós-lulismo
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 21/08/2005, O Globo, p. 2

A crise política fez uma curva acentuada com a denúncia de sexta-feira contra o ministro Palocci. Os desdobramentos, a esta altura, alteram apenas a hora ou a forma de seu desfecho. Qualquer que seja ele, mais cedo ou mais tarde o país entrará no pós-lulismo e no pós-PT. As feridas abertas e os venenos que estão no ar prometem um tempo de radicalização política nada salutar.

Mesmo tendo muita credibilidade e apoio para queimar, Palocci foi jogado pelo acusador premiado Rogério Buratti na roda dos investigados. Se dela sair, já estará ferido como eventual candidato de Lula, caso ele, preservando o mandato, desista da reeleição. A última pesquisa Ibope confirma o desgaste do presidente, que já não iria ao segundo turno apenas num enfrentamento com o tucano José Serra. Seus índices, antes entre 36% e 39%, teriam caído para entre 31% e 34%. Hoje ainda ganharia no segundo turno, mas os danos da crise estão apenas começando. Palocci até aqui era uma opção como candidato do governo. Um presidente é um grande eleitor, dizem os estudos políticos, quando tem mais de 40% de aprovação. Com menos do que isso, não influi. A aprovação de Lula caiu de 54% para 46%.

Após o tiro em Palocci, a semana começa com o foco na CPI dos Bingos, onde o senador pefelista José Jorge deve pedir sua convocação. Petistas e governistas terão novamente a penosa tarefa de montar barricadas, a não ser que o ministro e o governo decidam que a melhor forma de esvaziar a denúncia é o comparecimento para uma boa refutação, com todos os custos que isso tem. Esta CPI, composta apenas de senadores, tem agido com mais sobriedade. Não tem entre seus integrantes tantos jovens deputados sedentos de glória e luz televisiva. Tem como presidente o senador Romeu Tuma (PFL) e, como relator, Garibaldi Alves (PMDB). Entre seus integrantes, senadores experimentados, como Tasso Jereissati, Antonio Carlos Magalhães e Tião Viana. O comparecimento de um ministro a uma CPI não é uma ocorrência fatal, como virou pensamento entre nós. Churchill compareceu a um comitê parlamentar de investigação, prestou esclarecimentos e seguiu governando até ser rejeitado pelos ingleses depois da vitória dos aliados.

Mas ainda que os desdobramentos da denúncia contra Palocci sejam favoráveis, permitindo que ele continue a funcionar como âncora do governo, e que não surjam fatos novos e graves criando condições para o impeachment, o governo seguirá mancando e sangrando rumo a 2006. O pós-lulismo, como sugere a pesquisa Ibope, pode vir pela derrota, com Lula ou com outro candidato do PT. Não é provável que Lula, diante de uma derrota inevitável, aceite concorrer apenas para puxar votos para seu partido, que como viveria dizendo, levou seu governo a esta situação. Lula já vinha falando em traição bem antes do pronunciamento do dia 12.

No pós-lulismo, sejam quais forem os novos donos do poder, nada indica que teremos um país pacificado, concentrado na tarefa de fortalecer e reformar suas instituições e no esforço para alcançar um crescimento econômico continuado, gerar empregos, reduzir suas desigualdades, enfrentar seus problemas seculares. O pós-lulismo será um campo de guerra depois da batalha. Ainda que Lula volte para São Bernardo, como já disse, para viver entre os seus e longe da política; ainda que dirigentes importantes como Dirceu sejam cassados e que o PT perca seu registro; ainda assim os petistas continuarão existindo e atuando em outro partido. Sobretudo aqueles que não participaram do desastrado projeto de poder e cooptação política à base de dinheiro e uso dos instrumentos do Estado. O pós-petismo, sob qualquer forma, será uma força política ferida e ressentida.

Quando o PT virou governo e o PSDB começou a fazer uma oposição construtiva, no ano das reformas, escrevi aqui que poderíamos estar começando a ter uma política civilizada. Que os petistas, quando voltassem à oposição, tendo conhecido o governo, não repetiriam a oposição raivosa do passado. Mas agora, depois dos excessos da CPI dos Correios, do uso de criminosos como delatores premiados, da aliança com procuradores afoitos (que o PT também fazia) e do estímulo ao clima de "mata, esfola e quebra os dentes", os ímpetos de vingança serão fortes.

A disputa presidencial de 2006 será certamente a mais sangrenta depois da redemocratização, com Lula ou sem Lula na disputa. O número de candidatos deve ser grande, ao contrário do que ocorreu nas eleições que se seguiram à de 1989. Num tempo em que as ruas raivosas já pregam o "fora todos", como se viu na manifestação de quarta-feira em Brasília, o campo estará fértil para os aventureiros e os descolados do sistema, os tais "outsiders". Ganhe quem ganhar, governará um país dividido, ainda que a economia tenha resistido. Os movimentos sociais, que mal ou bem eram contidos pelo PT, estarão soltos no mundo. Tempos nada interessantes, qualquer que seja o desfecho da crise.